Satisfação em fazer bem feito? Não, o comercial sugere algo mais
Texto: Kleber Nogueira - Fotos:
reprodução
Da inspiração durante o banho ao
modelo de argila, o filme "Fábrica" mostra o novo Focus despertando
grande entusiasmo nos projetistas
O engenheiro de aerodinâmica, o
piloto de testes e os funcionários de diversos setores cantam a música
enquanto o Focus está nascendo
Quando o cliente recebe as
chaves do carro, a euforia dos funcionários pelo vidro lembra a de
familiares de uma noiva na hora do casamento
Recheado de qualidades técnicas e dono de um desenho com identidade
única, desde que foi lançado na Europa em 1998 (substituindo o
legendário Escort) o Ford Focus liderou comparativos, ganhou prêmios e
foi líder de vendas mundiais por dois anos. Foi e ainda é elogiado pela
mídia especializada pelo projeto, acerto e construção refinados. Mas,
acredite: ninguém — pelo menos não a grande maioria — compra um carro só
por causa disso.
No Brasil, a primeira geração do Focus chegou dois anos depois e nunca
emplacou em vendas como se esperava. A segunda geração só aportou por
aqui em 2008, quatro anos depois do lançamento europeu. Ainda assim, sem
o motor flexível — quase um padrão no segmento —, o que faria até uma
unanimidade técnica encalhar nas concessionárias. E lá se vão os
criativos para suas pranchetas, pensar numa maneira de criar fama para o
carro decolar. Eles escolheram o caminho mais óbvio, mas não o mais
chato. Óbvio, porque é bem clichê vender carro dizendo que a bordo de um
você fica mais atraente. Nem tão fácil assim é falar dessas coisas que
todo mundo já sabe de um jeito inédito, diferente. E não é que eles
conseguiram?
O conceito mais rudimentar de "criatividade" é a capacidade de "dizer o
que se quer dizer, sem dizer o que se quer dizer". Um pouco complexo,
talvez... Em propaganda, você não diria "o Ford Focus é um carro que vai
fazer você conquistar as mulheres". Ficaria chato. Você tem que criar
uma história para que o espectador deduza e conclua isso, sem que você
precise dizer. Daí fica bem mais interessante.
No filme "Fábrica", lançado em 2008, a agência JWT mostra o "processo de
concepção" de um Focus. Com um minuto de duração, o filme tem como
trilha sonora Happy Together, do grupo The Turtles, ícone do romantismo
adolescente norte-americano. A letra ilustra o caso de amor platônico
por um jovem, que fica imaginando como a vida dele seria colorida se a
garota que ele ama estivesse a seu lado. Aliás, perceba que essa
associação é recorrente na história da publicidade de automóveis: carros
e mulheres. A equação sugerida, por mais sutil que seja — e por mais
machista que ela pareça —, é simples: quanto melhor ou mais bonito o
carro, melhor ou mais bonita a mulher que você conseguirá conquistar com
ele.
"Imagine como você ficaria feliz se você tivesse um Focus" pode
significar "imagine como você ficaria feliz se conseguisse a mulher que
deseja por meio de um Focus". Este filme explora um conceito que é
fruto de um modelo mental. Ele diz que "carro é um objeto de desejo
masculino" e "carros deixam homens mais atraentes e poderosos na visão
das mulheres". Este é um filme voltado para os homens, embora não
pareça.
A primeira cena mostra um projetista da Ford tendo uma inspiração
enquanto toma banho. Todos sabemos que ideias brilhantes surgem
em momentos improváveis. A Ford diz que "o Focus é uma ideia genial". E todos na fábrica cantam felizes enquanto concebem
o carro: Imagine me and you/ I do/ I think about you day and night/ It's
only right/ To think about the girl you love/ and hold her tight/ So
happy together… (Imagine eu e você/ Imagino/ Penso em você dia e noite/
É sempre certo/ Pensar na garota que você ama/ E abraçá-la forte/ Tão
felizes juntos…).
Eles constroem o Focus como se concebessem
"a mulher de seus sonhos". Pense na emoção que é "pensar na mulher de
seus sonhos". Pois eles entendem disso e estão construindo um carro
conhecendo sua emoção. Essa emoção, esse desejo, está se materializando
num automóvel. Eles querem ajudar você a conquistar a mulher que você
ama — desde que você compre um Focus, claro.
E o filme segue. O espectador vai acompanhando todo o processo de
produção de um veículo, da prancheta aos primeiros modelos de argila
para definição de estilo. Os engenheiros discutem detalhes no computador
— e todos cantam Happy Together, olhando os detalhes como se
estivessem completamente apaixonados. E aquilo está tomando forma. Os
metalúrgicos cantam. A turma no bandejão vai em coro. Os engenheiros do
controle de qualidade admiram a "bela mulher que você vai conquistar" e
cantam. O engenheiro num túnel de vento, para testes de aerodinâmica,
canta. O piloto de capacete, enquanto testa a máquina, canta... E aquela
"bela garota de seus sonhos" cresce feliz, fica madura e encontra seu
noivo (você) numa concessionária. O carro surge como a projeção de uma
mulher. Veja que sugestiva é a letra:
If I should
call you up
Invest a dime
And you say you belong to me
And ease my mind
Imagine how the world could be
So very fine
So happy together
I can't see me loving nobody but you
For all my life
When you're with me
Baby the skies will be blue
For all my life
Se eu te
chamar aqui,
Investir uma moeda
E você me disser que é minha
E me acalmar
Imagine como o mundo ficaria,
Tão mais legal
Tão felizes juntos
Não posso imaginar amando ninguém além de você
Por toda minha vida
Quando você está comigo
Baby, os céus ficam azuis
Por toda minha vida
Não
é genial? Quando o vendedor dá a chave ao proprietário, ele o abraça
como quem entrega a filha caçula ao noivo. E todos que participaram da
criação da "bela garota" dão tchauzinho pelo vidro da "igreja", depois
do "casamento", assistindo à "menina" ir embora. Sim, é essa a mensagem:
compre um Ford Focus se você quer conquistar uma — ou exatamente aquela
— bela garota.
Ele foi feito pensando em "como é bom ficar feliz com a garota que se
gosta". O filme faz uma analogia subliminar entre um automóvel e o poder
de conquistar uma mulher. Aliás, esse tipo de analogia é comum aos
carros desse segmento devido ao perfil do público-alvo: jovens solteiros
e bem-sucedidos, profissional e financeiramente. Lembre-se das últimas
propagandas do Fiat Stilo e mesmo do Hyundai I30, onde o motorista
dirige o carro ao lado de uma bela garota.
Então, quando a Ford diz
"a gente nunca foi tão feliz fazendo um carro", leia: "Nós somos bons
mesmo: vamos arranjar a mulher da sua vida para você". A maioria nem
percebe e associa a frase apenas ao fato de todos estarem "felizes", no filme,
por ser o carro muito eficiente do ponto de vista técnico.