Afinal, quer andar ou ficar parado?

Motos são uma ferramenta para conquistar o bem mais valioso da vida, mas sua operação segura pode exigir mais que a habilitação

 

Qual o bem precioso que não pode ser dado, nem tirado, nem comprado, alugado, emprestado, oferecido ou distribuído? O tempo! Hoje as pessoas se desdobram para articular suas vidas de forma a aproveitar ao máximo as 16 horas do dia em que ficam acordados — alimentar, trabalhar, estudar, se divertir, se exercitar, ficar com a família — de forma a sobrar oito horas para dormir. Nem todo mundo consegue.

Inúmeras pessoas hoje convivem com o drama da “falta de tempo”. Deixam de estudar, de crescer profissionalmente, cuidar da saúde, ficar com os filhos porque passam muito tempo se deslocando no trânsito. Se pudessem, comprariam mais tempo. Mas o tempo não é comercializado: em vez de comprar tempo, pode-se perder menos tempo.

 

Deve-se mostrar o quanto a moto pode melhorar a vida: a indústria foca a publicidade em custo-benefício, mas não no real benefício

 

O deslocamento nas grandes cidades é o desafio para administrar o tempo. Hoje essa necessidade é tão importante que os jovens não se preocupam mais com automóveis ou casa própria. Descobriram que o maior benefício do aluguel é a possibilidade de morar perto do local de trabalho. E desprezam o automóvel porque as cidades não mais comportam tanto carro nas mesmas vias. Reduzindo o percurso casa-trabalho pode-se até mesmo abrir mão de veículos motorizados próprios e partir para meios como bicicleta ou táxi.

Os carros param e as motos circulam: tempo que pode ser aproveitado

Nesse contexto a moto ganhou uma nova abordagem. Para alguns ela é essencial para melhorar a qualidade de vida: passam menos tempo se deslocando e usam o tempo para atividades mais nobres. Ou enxergam a moto como um veículo de fim de semana, só pelo prazer de viajar em duas rodas. Assim como os barcos, alguns tratam a moto como um bem de lazer.

Mas quando olhamos para os números anunciados pela Abraciclo — associação de fabricantes de motos e bicicletas —, vemos que as vendas de moto estão despencando em um ritmo assustador. Nos seis primeiros meses de 2016 houve queda de 33,4% nas vendas em relação a igual período de 2015, que já foi ruim. Como explicar que um veículo que pode promover a qualidade de vida está vendendo 50% a menos do que quatro anos atrás?

Parte está na conjuntura econômica, que tirou não só os empregos (e dinheiro) dos brasileiros, mas também a confiança no futuro. Quem tem dinheiro guardado não gasta porque não sabe o dia de amanhã. Mas acredito que também falte mostrar aos brasileiros o quanto a moto pode melhorar suas vidas. Basta ver como são feitas hoje as propagandas, voltadas para a venda ao varejo, com anúncio de descontos, maior garantia, revisões e troca de óleo grátis, parcelamento sem juros, troca com troco, etc. A indústria e o varejo focam toda a publicidade em custo-benefício, mas se esquecem de mostrar o real benefício.

O que a indústria precisa vender não é moto, mas tempo.

 

Trauma vs. ensino

Nos cursos da ABTrans — Academia Brasileira de Trânsito — tem aparecido uma quantidade muito grande de novos usuários de motos, especialmente mulheres. O perfil do novo consumidor de moto mudou e parece que só a indústria não percebeu.

Uma dessas alunas contou uma história chocante. Dona de um bufê que presta serviços para eventos, ela precisava visitar vários endereços por dia, mas numa cidade como São Paulo esse trabalho de carro limitava sua operação. Por isso decidiu comprar um scooter. Quando foi se habilitar, veio o choque. “O instrutor me perguntou se eu sabia andar de bicicleta e dirigir carro. Depois me colocou numa moto 250, mostrou a embreagem, o câmbio, mandou ligar e sair. A moto empinou, foi em linha reta e bateu em mais duas. Ele me xingou de tudo que foi nome e saí chorando, constrangida. Nunca mais voltei”, relata.

Aí está outro gargalo para a indústria: como vender algo tão precioso como o tempo se não for capaz de ensinar a ferramenta do jeito certo? Um instrutor de moto-escola mal treinado pode acabar com horas de trabalho de um bom vendedor de moto. Como vencer o desafio de vender algo se não ensinar como manusear?

 

Exibir acidentes pode não apenas servir para nada em termos de ensino, como causar um trauma que vai tirar a naturalidade de pilotar

 

O que a fez perder o trauma foi um paciente e didático método de aprendizado, que só foi possível em uma estrutura feita 100% para atender ao novo motociclista. Porque a “formação” promovida pelas moto-escolas limita-se a um adestramento para passar na prova de habilitação e algumas leis de trânsito. O resto, o novo motociclista aprenderá na rua, se der tempo.

Curso de pilotagem ajuda a entender que moto se pilota sem pressa

Outro equívoco promovido não só pela indústria, como pela mídia especializada (e eu me incluo nela), foi vender a ideia de que moto serve para ganhar tempo por ser um veículo ágil no trânsito. Essa proposta trouxe na garupa um componente perigoso: a agilidade é irmã da velocidade. Além disso, o conceito de ganhar pressupõe que também se pode perder. Temos, aí sim, a perigosa mensagem de que moto é feita para ganhar tempo, por isso você precisa correr. Mas não é verdade.

Ninguém ganha tempo, porque além de ser uma medida abstrata, o relógio tem um limite físico que são os 60 segundos. O que podemos fazer é não perder tempo. Por isso o conceito a ser trabalhado precisa mudar de foco.

O cérebro é totalmente programável. Assim como um computador, ele precisa dos dados certos para administrar as ações. Dependendo de como esses dados são imputados, o resultado pode ser o benefício ou a — literal — dor de cabeça. Daí a importância de apresentar a moto de forma que o cérebro assimile o que ela tem de bom a oferecer. Fico enraivecido quando vejo “profissionais” de segurança exibindo acidentes com motociclistas, na crença ingênua de que a imagem servirá de lição. Assimilar o acidente (o lado ruim da moto) pode não apenas servir para nada em termos de ensino, como causar um trauma que vai tirar a naturalidade de pilotar.

Sim, vender moto não é fácil, sobretudo em um período de recessão. Talvez se fábricas e entidades ligadas a ela mostrassem o maior benefício das motos as coisas pudessem mudar. Quem, nesse mundo, tem quatro ou cinco horas para usar todos os dias apenas em deslocamento?

Engana-se quem vende a moto como um veículo feito para ganhar tempo, porque com ela a gente simplesmente não perde tempo. Esse é o conceito que o cérebro precisa assimilar para traduzi-lo em uma pilotagem segura, sem necessidade de correr. As pessoas que você vê correndo e se acidentando no trânsito são pessoas que correriam e se acidentariam com qualquer veículo, até a pé. Porque o cérebro delas foi programado para ganhar tempo a todo custo — mesmo que o preço a pagar seja a vida.

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Geraldo Tite Simões é jornalista e instrutor de pilotagem dos cursos Abtrans e Speed Master

A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars

 

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