Primeiro caso de
larga aplicação da aerodinâmica a um automóvel de série, o Airflow causou controvérsia
pelo desenho e a fluidez de linhas
"O mais interessante carro em
anos", segundo o anúncio, obtinha seu "rodar flutuante" pelo
balanceamento dinâmico e não só molas macias |
Fracasso implica a não aprovação ou não aceitação. Pioneirismos e
revolução podem até levar a ele, mas implicam também a coragem de ousar,
de fazer antes o que os outros não souberam, não puderam ou não
quiseram. Por exemplo, o desenho de automóveis certamente não começou
com o Chrysler Airflow — nome que significa fluxo de ar —, mas se pode
afirmar com fortes argumentos que, a partir dele, a importância da
estética dos carros chamou atenção pela primeira vez na engenharia, no
mercado e na cultura. Desde que o automóvel foi criado em 1886, a
evolução de suas formas vinha seguindo uma trajetória lógica a partir da
charrete motorizada que esse tipo de veículo era no início. A engenharia
determinava para onde as formas deveriam seguir. O carro era razão, não
emoção.
Ironicamente, o modelo que primeiro colocou a estética num patamar de
relevância acima do meramente formal tinha um propósito claro de
facilitar o produto da técnica, o desempenho. Se antes do Airflow já
havia exemplos de influência de estilo, não se pode notar um fenômeno no
fato de o capô cilíndrico do Franklin de 1906 ser copiado do
Delaunay-Belleville francês, ou o de 1910 ter um bico dianteiro
semelhante ao do Renault XA. Esses eram casos isolados. Já a estética
streamline — caracterizada por linhas fluidas — dos anos 30, capitaneada
pelo malfadado Chrysler, faria o desenho automotivo dar um salto
evolutivo que reverberou por toda a indústria mundo afora. Afinal, a
melhoria no desempenho seria proporcionada pela aerodinâmica, ramo da
dinâmica que estuda o movimento do ar e de outros fluidos gasosos e das
forças que agem sobre corpos em movimentos relativos a tais fluidos.
Os anos 30 marcaram a assimilação da tecnologia desenvolvida para a
aeronáutica pelos automóveis. Longe de defender que o Chrysler Airflow
tenha sido um caso único — havia carros experimentais dos dois lados
do Atlântico —, ele foi o primeiro modelo de série produzido em larga
escala a oferecer os benefícios da aerodinâmica, não em detalhes, mas em
toda sua concepção. A aviação vinha se desenvolvendo desde o fim do
século XIX. Em 1906, o brasileiro Alberto Santos-Dumont voou na primeira
aeronave de asas fixas que dispensava o impulso de equipamentos de solo,
o 14-Bis. O projeto foi desenvolvido com o engenheiro francês e futuro
fabricante de automóveis de luxo Gabriel Voisin. Nos Estados Unidos,
antes e depois disso, os irmãos Orville e Wilbur Wright também vinham
desenvolvendo suas aeronaves, tanto que até hoje são considerados os
pais da aviação naquele país.
Esse acelerado avanço tecnológico levou o avião à assistência bélica já
na Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918. Em 1919 houve tanto a
primeira travessia do Atlântico, pelos ingleses John Alcock e Arthur
Whitten Brown — o que Charles Lindbergh repetiria sozinho em 1927 —,
quanto o primeiro voo comercial, entre Estados Unidos e Canadá. Para
tudo isso ser possível, inúmeros estudos da aerodinâmica foram
efetuados, ampliando vasta e rapidamente o conhecimento sobre como
vencer a resistência do ar em função da velocidade. Como as aeronaves se
sujeitam a maiores desafios para se locomover que um automóvel, logo se
percebeu que os ganhos alcançados por seus engenheiros poderiam ser
aproveitados pelos projetistas dos pequenos e grandes fabricantes da
indústria automobilística. O Airflow foi a maior evidência disso.
A origem de seu projeto se deu em 1927, talvez pela empolgação em torno
da conquista histórica de Lindbergh, que se tornou um ídolo para os
norte-americanos. O chefe de pesquisa da Chrysler, Carl Breer, usou sua
admiração por uma suposta revoada de pássaros migrantes que fogem do
inverno em seu país, o que ele acabou percebendo se tratar de aviões
militares em manobras. Tendo Voisin e o engenheiro aeronáutico austríaco
Edmund Rumpler como referências, Breer propôs ao chefão da companhia,
Walter P. Chrysler (leia boxe),
um carro racional baseado na tecnologia da aviação. Chrysler concordou,
confiando a tarefa aos chamados três mosqueteiros da engenharia da
empresa: Breer,
Owen Skelton e Fred Zeder. Breer e sua equipe foram então consultar o
engenheiro e pioneiro norte-americano da aviação Bill Earnshaw. Foi ele
quem pôs Breer em contato com ninguém menos que Orville Wright, com quem
conduziram testes no primeiro túnel de vento de Detroit, especialmente
construído para testar o Airflow.
O que há décadas se tornou corriqueiro não podia ser mais exótico
naquele momento da evolução do automóvel. Uma das maiores curiosidades
observadas neste teste, senão a maior, é que os carros da época eram
mais eficientes em termos de aerodinâmica trafegando em marcha à ré que
se movimentando para frente. Era latente a necessidade de torná-los
menos resistentes ao ar para que a potência pudesse ser mais aproveitada
e o desempenho ampliado. Desde aquela época já se considerava a forma da
gota um ideal de baixa resistência ao ar, o que, para ser adaptado a um
carro, implicaria deslocar o compartimento de passageiros mais à frente.
Nascia aí uma das premissas históricas do desenho da Chrysler.
O motor montado sobre o eixo dianteiro permitiu que o
habitáculo pudesse ser projetado sobre os eixos, com a cabine mais
próxima da frente.
Continua
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