Vanguarda em fluxo

Pioneiro nas formas fluidas do estilo streamline, o Airflow da
Chrysler não refletiu nas vendas seu enorme poder de influência

Texto: Fabiano Pereira - Fotos: divulgação

Primeiro caso de larga aplicação da aerodinâmica a um automóvel de série, o Airflow causou controvérsia pelo desenho e a fluidez de linhas

"O mais interessante carro em anos", segundo o anúncio, obtinha seu "rodar flutuante" pelo balanceamento dinâmico e não só molas macias

Fracasso implica a não aprovação ou não aceitação. Pioneirismos e revolução podem até levar a ele, mas implicam também a coragem de ousar, de fazer antes o que os outros não souberam, não puderam ou não quiseram. Por exemplo, o desenho de automóveis certamente não começou com o Chrysler Airflow — nome que significa fluxo de ar —, mas se pode afirmar com fortes argumentos que, a partir dele, a importância da estética dos carros chamou atenção pela primeira vez na engenharia, no mercado e na cultura. Desde que o automóvel foi criado em 1886, a evolução de suas formas vinha seguindo uma trajetória lógica a partir da charrete motorizada que esse tipo de veículo era no início. A engenharia determinava para onde as formas deveriam seguir. O carro era razão, não emoção.
 
Ironicamente, o modelo que primeiro colocou a estética num patamar de relevância acima do meramente formal tinha um propósito claro de facilitar o produto da técnica, o desempenho. Se antes do Airflow já havia exemplos de influência de estilo, não se pode notar um fenômeno no fato de o capô cilíndrico do Franklin de 1906 ser copiado do Delaunay-Belleville francês, ou o de 1910 ter um bico dianteiro semelhante ao do Renault XA. Esses eram casos isolados. Já a estética streamline — caracterizada por linhas fluidas — dos anos 30, capitaneada pelo malfadado Chrysler, faria o desenho automotivo dar um salto evolutivo que reverberou por toda a indústria mundo afora. Afinal, a melhoria no desempenho seria proporcionada pela aerodinâmica, ramo da dinâmica que estuda o movimento do ar e de outros fluidos gasosos e das forças que agem sobre corpos em movimentos relativos a tais fluidos.
 
Os anos 30 marcaram a assimilação da tecnologia desenvolvida para a aeronáutica pelos automóveis. Longe de defender que o Chrysler Airflow tenha sido um caso único — havia carros experimentais dos dois lados do Atlântico —, ele foi o primeiro modelo de série produzido em larga escala a oferecer os benefícios da aerodinâmica, não em detalhes, mas em toda sua concepção. A aviação vinha se desenvolvendo desde o fim do século XIX. Em 1906, o brasileiro Alberto Santos-Dumont voou na primeira aeronave de asas fixas que dispensava o impulso de equipamentos de solo, o 14-Bis. O projeto foi desenvolvido com o engenheiro francês e futuro fabricante de automóveis de luxo Gabriel Voisin. Nos Estados Unidos, antes e depois disso, os irmãos Orville e Wilbur Wright também vinham desenvolvendo suas aeronaves, tanto que até hoje são considerados os pais da aviação naquele país.
 
Esse acelerado avanço tecnológico levou o avião à assistência bélica já na Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918. Em 1919 houve tanto a primeira travessia do Atlântico, pelos ingleses John Alcock e Arthur Whitten Brown — o que Charles Lindbergh repetiria sozinho em 1927 —, quanto o primeiro voo comercial, entre Estados Unidos e Canadá. Para tudo isso ser possível, inúmeros estudos da aerodinâmica foram efetuados, ampliando vasta e rapidamente o conhecimento sobre como vencer a resistência do ar em função da velocidade. Como as aeronaves se sujeitam a maiores desafios para se locomover que um automóvel, logo se percebeu que os ganhos alcançados por seus engenheiros poderiam ser aproveitados pelos projetistas dos pequenos e grandes fabricantes da indústria automobilística. O Airflow foi a maior evidência disso.
 
A origem de seu projeto se deu em 1927, talvez pela empolgação em torno da conquista histórica de Lindbergh, que se tornou um ídolo para os norte-americanos. O chefe de pesquisa da Chrysler, Carl Breer, usou sua admiração por uma suposta revoada de pássaros migrantes que fogem do inverno em seu país, o que ele acabou percebendo se tratar de aviões militares em manobras. Tendo Voisin e o engenheiro aeronáutico austríaco Edmund Rumpler como referências, Breer propôs ao chefão da companhia, Walter P. Chrysler (leia boxe), um carro racional baseado na tecnologia da aviação. Chrysler concordou, confiando a tarefa aos chamados três mosqueteiros da engenharia da empresa: Breer, Owen Skelton e Fred Zeder. Breer e sua equipe foram então consultar o engenheiro e pioneiro norte-americano da aviação Bill Earnshaw. Foi ele quem pôs Breer em contato com ninguém menos que Orville Wright, com quem conduziram testes no primeiro túnel de vento de Detroit, especialmente construído para testar o Airflow.

O que há décadas se tornou corriqueiro não podia ser mais exótico naquele momento da evolução do automóvel. Uma das maiores curiosidades observadas neste teste, senão a maior, é que os carros da época eram mais eficientes em termos de aerodinâmica trafegando em marcha à ré que se movimentando para frente. Era latente a necessidade de torná-los menos resistentes ao ar para que a potência pudesse ser mais aproveitada e o desempenho ampliado. Desde aquela época já se considerava a forma da gota um ideal de baixa resistência ao ar, o que, para ser adaptado a um carro, implicaria deslocar o compartimento de passageiros mais à frente. Nascia aí uma das premissas históricas do desenho da Chrysler. O motor montado sobre o eixo dianteiro permitiu que o habitáculo pudesse ser projetado sobre os eixos, com a cabine mais próxima da frente. Continua

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Data de publicação: 16/1/10

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