A Vemag se aproximava do fim, os sinais eram claros. A Auto Union
pertencia à Daimler-Benz desde 1958 e fazia tempo que não se
interessava mais pela atividade de sua licenciada Vemag. Em 1965 a
Volkswagen comprou a Auto Union da Daimler-Benz. Tudo parecia
mesmo caminhar para o fim — a Vemag em má situação financeira, a
atividade de competições evidentemente ameaçada.
Havia um carro de Fórmula Júnior com motor DKW que pertencera ao
piloto Bird Clemente, da Willys. Bird havia sido piloto da Vemag,
mas as relações de amizade com o gerente de departamento de
competições, Jorge Lettry, e com a diretoria eram antigas e
prosseguiam, apesar de Bird pilotar para outra fábrica. A
categoria não tinha ido adiante e os cinco F-Júnior fabricados por
Toni Bianco estavam encostados. O que havia sido de Bird estava
guardado no departamento de competições da Vemag.
Foi quando Lettry teve uma idéia: usar aquele chassi e envelopá-lo,
com uma carroceria aerodinâmica e leve, para tentar estabelecer a
primeira marca brasileira e sul-americana para o quilômetro
lançado, como fecho de ouro da fase de competições da Vemag.
Conhecedor como poucos da história das competições antes da Segunda Guerra Mundial, Lettry vislumbrou um DKW
repetindo as tentativas de recordes da Auto Union e da
Mercedes-Benz, com carros bem aerodinâmicos, na então nova
autobahn que ia de Frankfurt a Darmstadt.
Lettry procurou duas pessoas que certamente topariam e
viabilizariam a empreitada: o estilista Anísio Campos e o
encarroçador Rino Malzoni (acima, Rino à esquerda, Anísio à
direita e o piloto Norman no carro). Rino já vinha produzindo na fazenda da
família em Matão, interior paulista, um grã-turismo sobre a
plataforma mecânica do DKW, o GT
Malzoni. A Vemag já competia com três desses carros e vinha
obtendo grande sucesso.
Havia, assim, todas as condições para produzir o monoposto
aerodinâmico em Matão. Anísio o desenhou e Rino o construiu, e o
carro foi batizado de Carcará, O nome foi sugestão de Lettry, uma
vez que estava em voga, pela voz de Maria Bethânia, a canção de
mesmo nome escrita por João do Vale e José Cândido, inicialmente
interpretada por Nara Leão. A ave de rapina falconiforme, que
habita desde o sul dos Estados Unidos à América do Sul, combinava
com o espírito desafiante do carro.
O F-Júnior foi transportado para a fazenda em Matão e começou o
trabalho. Na base do martelo sobre uma armação de arame,
verdadeiro trabalho artesanal, a carroceria de alumínio foi
tomando forma. Uma vez pronto o carro, e antes de pintá-lo,
começaram os testes dinâmicos em estradas e no Autódromo de
Interlagos, em que foi plenamente aprovado. "É completamente liso
em termos de aerodinâmica", comentou Lettry na ocasião. A sensação de aceleração na última marcha (quarta) era
impressionante. |
O motor DKW de três cilindros deslocava 1.089,4 cm3 e, totalmente
desenvolvido para máxima potência, alcançava 103 cv a 6.000 rpm
com o elevado torque de 11,7 m.kgf a 5.000 rpm. Para a alta
velocidade prevista, foram usados quarta marcha e diferencial os
mais longos possíveis, com pneus 165-15, embora resultasse numa
relação final abaixo da desejável — apenas 30,6 km/h por 1.000
rpm.
Enquanto isso, Lettry conseguira a cooperação da revista Quatro
Rodas, na pessoa do diretor de redação, o polonês Leszek Bilyk,
que havia trabalhado na Vemag antes de passar à Editora Abril. A
revista importou sofisticado equipamento de cronometragem
eletrônica para o registro de velocidade, exigência da Federação
Internacional do Automóvel (FIA) para esse tipo de prova.
Uma vez pintado de branco, como os DKWs da equipe Vemag, o
Carcará, já identificado com o nome da ave nas laterais, foi
levado para o Rio de Janeiro no fim de junho de 1966. No dia 29,
nas primeiras horas da manhã e com um céu de inverno absolutamente
azul, o Carcará estabeleceu a primeira marca brasileira e
sul-americana para quilômetro lançado, atingindo 212,903 km/h,
média de duas passagens, com o piloto Norman Casari, paulista
radicado no Rio de Janeiro, ao volante.
A prova foi realizada num trecho plano da antiga BR-2 rodovia
Rio-Santos (acima), que hoje atravessa zona densamente edificada como Av.
das Américas, na Barra da Tijuca. Embora em local deserto na
época, a pista foi fechada pela Polícia Rodoviária Federal.
Foi a última atuação da equipe Vemag — encerrada com chave de
ouro, como Lettry tanto queria.
Bob Sharp |