Não é novidade que automóvel se compra, sobretudo, pela emoção e não
pela razão. Mesmo assim, quando analiso as compras de algumas
pessoas — ou da maioria delas — por aspectos puramente racionais,
torna-se difícil entender o que as levou a fazer sua opção.
Mesmo que pertençam ao passado os carros familiares médios e grandes
de duas portas (uma escolha irracional e quase exclusiva do Brasil),
ainda se vêem muitas opções por tipos de veículos pouco adequados à
proposta de uso. Um dos casos mais evidentes parece ser o de
utilitários esporte. Mesmo quando derivados de automóveis, são
veículos mais pesados, menos eficientes do ponto de vista
aerodinâmico e, por isso, mais lentos e gastadores de combustível
que um automóvel comum com o mesmo espaço disponível — fatores que
ganham importância em tempos de consciência ambiental. Isso vale
tanto na comparação de modelos compactos, como EcoSport e Fiesta,
quanto na de grandes veículos, como um Mercedes-Benz ML em relação a
uma perua Classe E.
Certo, o utilitário promete maior robustez ao uso em pisos de má
qualidade e, em parte dos casos, aptidão ao fora-de-estrada. Mas na
prática estas são vantagens que uma minoria desfruta, enquanto suas
desvantagens afetam todos os usuários. É inevitável que um veículo
mais alto em relação ao solo (portanto, com
centro de gravidade mais elevado)
tenha menor estabilidade, e com isso menor segurança em situações de
emergência, que outro com construção similar e menor altura do solo.
Se a construção for diferente, pior ainda: os utilitários baseados
em chassi de picape, como o Blazer, ficam muito longe do
comportamento dinâmico de um carro de passeio. Não é por acaso que
se vêem tantos acidentes graves, até com capotagem, desses veículos
quando usados pelas polícias.
Famílias recorrerem a utilitários derivados de picapes — ou os
próprios picapes — para seu transporte ainda podia fazer algum
sentido nos anos 80, quando não havia carros nacionais com espaço
para mais de cinco pessoas nem era possível ter um importado.
Naquela época, proliferaram adaptações para cabine dupla e perua,
não raro com acabamento de alto luxo e preço na estratosfera, para
que a família se arrastasse pelas estradas com ruidosos motores a
diesel de menos de 100 cv... Hoje o quadro é outro: temos minivans e
sedãs amplos por preços razoáveis, muito mais eficientes, seguros e
confortáveis.
Curto em excesso
Além do tipo de veículo, outras escolhas são difíceis de
entender. Em meio às alterações em suspensão e calibração de central
eletrônica, entre outras que os fabricantes costumam fazer antes de
vender no Brasil um carro projetado no exterior, já se tornou
habitual encurtar as relações de marcha, a do diferencial ou as duas
coisas, a fim de produzir mais rotações para a mesma marcha e
velocidade.
As fábricas justificam-se pela preferência brasileira por câmbios
curtos. De fato, houve vários casos de modelos que, lançados com
relações de marcha de padrão europeu, tiveram de ser encurtados mais
tarde porque os motoristas daqui reclamaram de falta de disposição
ao acelerar e retomar velocidade. Existe até o curioso parâmetro de
transpor determinadas lombadas em terceira marcha: se o carro não o
fizer bem, não serve — como alegou a engenharia da Volkswagen ao
lançar o Polo, em 2002. |
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Só
que isso tem levado, em várias marcas, a encurtamentos exagerados
que resultam em excesso de rotação no uso em rodovia. Além do citado
Polo, que desde então já passou por três alongamentos de
câmbio, houve exagero nas caixas manuais do Citroën C4 (tanto VTR
quanto Pallas), do antigo Toyota Corolla (resolvido na nova
geração), do Renault Mégane 1,6 e da maioria dos modelos de 1,0
litro, para ficar em exemplos recentes.
Em nome de suposta agilidade — que é apenas sensação, pois o mesmo
efeito pode ser obtido com o uso de marcha mais baixa quando
desejado —, perde-se em todo o resto: aumentam ruído e vibrações,
sobe o consumo e surge a incômoda sensação de que o carro "pede
marcha" na estrada. Boa parte da insatisfação que costuma haver com
os modelos de 1,0 litro, quando se sai para uma viagem, tem a ver
com rotação excessiva (e desnecessária) e não com falta de potência,
que hoje é aceitável para acompanhar o fluxo de tráfego no plano. Em
um carro de mais de 130 cv, nem se fala. O encurtamento nesse caso
não tem nenhuma razão.
Preto por fora e por dentro
Há também a questão de cores. Observe um pátio qualquer com
automóveis recentes, sobretudo em São Paulo, e conte quantos são
pretos. Claro que gosto não se discute, mas não me parece que se
trate de preferência — pela esmagadora maioria de prata e preto nos
carros novos, duvido que tanta gente só goste dessas cores. O fato é
que, do ponto de vista racional, o preto está entre as cores menos
interessantes. Além de evidenciar poeira e eventuais riscos, o tom
escuro é o que mais absorve calor, o que resulta em maior
aquecimento do interior do carro.
Creio que os motoristas de décadas passadas — ou seus contemporâneos
à frente dos fabricantes e das concessionárias da época — levavam
isso muito em conta, pois carros pretos eram raros até a década de
1970. Por algum motivo, um dia alguém viu nessa cor uma imagem de
requinte (seria pelos carros oficiais, de "gente importante"?) e a
cor se tornou uma das mais vendidas neste país tropical. Não dá para
compreender.
Da mesma forma, como entender a preferência nacional por tons
escuros no revestimento interno dos veículos? Experimente sair ao
sol intenso com uma camiseta branca e depois com uma preta, e me
diga com qual você passou mais calor. É simples fazer um paralelo
com o tecido — ou, pior, o couro — dos bancos: quanto mais escuro,
mais quente ficará quando exposto à luz solar. Sim, seu carro
provavelmente tem película escurecedora nos vidros, mas às vezes
isso não impede a entrada do sol pelo pára-brisa quando estacionado.
Tons claros também trazem sensações de espaço e arejamento, que
imagino que agradem a qualquer pessoa. No entanto, eles praticamente
desapareceram do mercado sob alegação de que o tecido claro "suja
muito". Dou aplausos às poucas marcas que mantêm essa opção e,
sobretudo, às que oferecem algo de novo em relação ao cinza, como os
belos tons de bege do Fiat Linea e dos Toyotas Corolla SE-G e Hilux
SW4. Talvez com o tempo o brasileiro passe a apreciar essa
alternativa aos interiores cinzentos e escuros, forçando os
fabricantes a sair da mesmice.
A própria opção pelo couro já é difícil de compreender. Concordo que
dá aspecto luxuoso e que facilita a limpeza, mas e o restante? No
clima frio, o couro gela; sob o sol, esquenta a ponto de queimar os
desprevenidos — variações bem mais amenas quando o revestimento é de
tecido. Que 50% dos compradores desejassem o couro, eu entenderia,
mas a impressão é de que o material é preferido por quase todos — só
não tem quem não pode ou não quer pagar por ele. Mesmo entre os
poucos que dizem não gostar, há quem tenha o couro em seu carro de
classe média ou superior porque "não se consegue vender com tecido
hoje em dia". Ou seja, o opcional tornou-se obrigatório.
Poder revender o carro sem muita dificuldade e com a menor perda
financeira possível — o que explica boa parte das "preferências"
brasileiras — é compreensível do ponto de vista racional, mas
comprar carro continua a ser um ato determinado pela emoção. E
quando a emoção fala alto demais, feliz ou infelizmente, qualquer
discurso racional perde o sentido. |
Em
nome de suposta agilidade, perde-se em todo o resto: aumentam ruído
e vibrações, sobe o consumo e surge a incômoda sensação de que o
carro "pede marcha" na estrada |