Há
mais de dois anos, na edição nº 256, comentei
neste espaço algumas inverdades que a indústria automobilística
insistia em apresentar e que — se fosse possível inventar um, claro
— ficariam retidas no "detector de mentiras" acoplado ao programa de
e-mail do computador. Desde então as falsas informações, veiculadas
sobretudo pela publicidade, não diminuíram e talvez estejam ainda
mais frequentes, o que tornaria especialmente útil o tal detector
para se ler jornais, assistir à TV ou navegar pela internet.
E posso apostar que boa parte do conteúdo considerado suspeito viria
da mesma fonte: a Hyundai-Caoa, empresa que importa para o Brasil os
carros da sul-coreana Hyundai e fabrica caminhões leves em Anápolis,
GO.
Começarei pelo hatch médio I30. Logo abaixo de seu nome, nos
anúncios impressos, aparece a menção "2.0 CVVT 145 CV - Câmbio
automático multimarchas". Em se tratando de caixa automática, "multimarchas"
leva a entender um número de marchas acima do normal e, quando se lê
CVVT tão perto, é fácil se lembrar de CVT, a
caixa de variação contínua usada no
Nissan Sentra, entre outros, que produz o efeito de marchas
infinitas dentro dos limites definidos pelo fabricante. Portanto,
conclui o consumidor, o I30 deve ter CVT, certo? Errado. A sigla
CVVT refere-se à variação de tempo de
válvulas do motor e não tem nada com o câmbio. Ao menos o "multimarchas"
— já que o prefixo "multi" significa grande número — indicaria um
câmbio automático de seis marchas? Também não. São apenas quatro, o
mínimo usado hoje e o mesmo número do Dodge Polara automático de 30
anos atrás.
O anúncio do I30, como é habitual na empresa, também traz uma vasta
lista de equipamentos do veículo, como oito bolsas infláveis e
controle de estabilidade. São duas
bolsas frontais, duas laterais e duas cortinas, em total de oito.
Oito? Sim, na conta da Hyundai-Caoa e de mais uma ou outra empresa
do ramo. Quando questionamos uma delas (por um contato na
Mitsubishi), anos atrás, a resposta foi que as duas cortinas valiam
por quatro, por proteger tanto ocupantes dos bancos dianteiros
quanto do traseiro. Nesse caso, a bolsa frontal, a lateral e a
cortina que atuam junto ao motorista não deveriam ser contadas como
uma só?
Ainda sobre equipamentos, ficaram famosos casos de clientes que,
acreditando na publicidade e no que ouviram de vendedores, compraram
o I30, pagaram por todo aquele conteúdo e levaram para casa um carro
bem menos dotado, às vezes sem itens de valor elevado como o
controle de estabilidade. Um desses clientes, o leitor
Ronaldo Uliana de Oliveira,
escreveu ao Best Cars e teve sua reclamação enviada à
assessoria de imprensa da Caoa, que não se manifestou.
O mesmo I30 serviu para uma curiosa manobra envolvendo a imprensa.
Desde o ano passado, a Caoa anunciou que o hatch chegaria por cerca
de R$ 59 mil com os equipamentos de segurança citados e vários
outros itens. Até o início efetivo de vendas, o real ganhou e perdeu
valor, mas a empresa manteve o preço anunciado quando cedeu o carro
para avaliação de algumas revistas. Quatro Rodas chegou a lhe
atribuir a vitória em um comparativo de médios, tendo como base o
preço citado. Só que, quando os interessados foram às
concessionárias atrás da pechincha, descobriram que grande parte do
conteúdo era cobrado à parte e que, com todos os itens que
supostamente viriam de série, o preço de verdade tornava-se quase R$
20 mil mais alto — fato confirmado pela própria revista um mês
depois. Claro que a importadora usou, pelo tempo que pôde, o
comparativo em sua publicidade para atrair mais incautos.
Na propaganda de outro modelo importado pela Caoa, o utilitário
esporte Tucson, a citação aos "oito airbags" também está presente,
mas há mais. Há várias semanas o modelo importado da Coreia do Sul —
onde está saindo de produção para ceder lugar ao IX35 — é anunciado
como "made in Brazil", embora a produção em Anápolis nem sequer
tenha começado. O exercício de futurologia vai além. Abaixo do "made
in Brazil", a Hyundai-Caoa anuncia que "em breve, o Tucson nacional
será exportado para os EUA, Europa e todo o planeta".
Será mesmo? Mercados desenvolvidos e exigentes não costumam aceitar
produtos defasados, já substituídos por novas gerações no país de
origem, como o Tucson. Também para Quatro Rodas, a empresa
mudou bastante o discurso ao falar em "um feeling" de que fecharia
contratos para vender o modelo na América Latina e na Europa.
Como feeling é apenas uma expectativa, cria-se um abismo entre o que
garante o anúncio e o que realmente pretende a empresa. |
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Pesquisa do J.D. Power
Tudo isso se refere ao que a Hyundai-Caoa anuncia no presente,
mesmo após tanta repercussão de propagandas anteriores com
inverdades e distorções. No ano passado a fundação Proteste
notificou-a por divulgar como itens de série, no modelo Veracruz,
recursos que não estariam disponíveis no mercado brasileiro. Depois
o Tucson foi anunciado como líder da categoria, em uma lista que
"esquecia" o Sportage da empresa-irmã (na Coreia) e concorrente
direta (no Brasil) Kia, levando esta marca a protestar ao Conar,
Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. Este ano, a
menção à mesma Kia foi "esquecida" quando a Hyundai divulgou ter superado a
Ford em vendas mundiais no primeiro semestre — vitória que só
acontecia quando os números de Hyundai e Kia eram somados.
E há a já famosa questão dos títulos de qualidade relacionados ao
J.D. Power, um instituto de pesquisa independente dos EUA. Segundo a
Caoa, a Hyundai seria "a melhor dos USA em qualidade (...),
superando BMW, Honda, Toyota, Audi e todas as outras marcas". Num
desses anúncios do Azera e do Tucson, no jornal Folha de S.Paulo,
vê-se um asterisco junto à frase, mas não há observação a respeito
em toda a página. Encontrei-a na página ao lado, a do I30: o título
refere-se ao estudo inicial de qualidade pelo instituto, que analisa
defeitos nos três primeiros meses de uso do carro, e o título de
"melhor" deixa de lado marcas consideradas "exclusivas" pela
Hyundai-Caoa — Lexus, Porsche e Cadillac —, que tiveram melhor
colocação que a dela na pesquisa. Se for considerado o estudo de
confiabilidade após três anos de uso do mesmo J.D. Power, a Hyundai
cai para 14º lugar, atrás de Honda, Toyota, Audi (as mesmas que ela
diz superar em qualidade) e várias outras marcas, "exclusivas" ou
populares. Se você fica só três meses com o carro, pode desprezar o
segundo estudo...
Um ponto importante é que a pesquisa se refere ao leque de modelos
da Hyundai vendidos nos EUA, que inclui o pequeno Accent, o médio
Elantra e o grande Genesis — nenhum deles disponível hoje no Brasil.
Os dois últimos foram os melhores de suas categorias no estudo de
2009, o que levou a marca à boa posição na tabela geral. No entanto,
o que importa é o que existe no mercado brasileiro, certo?
No mesmo estudo de qualidade inicial tão alardeado pela importadora,
o carro-chefe da marca no Brasil — o Tucson — está em 23º lugar
entre 23 utilitários esporte compactos, com nota média 2 entre 5
possíveis. Ou seja, o "melhor" é na verdade o pior de sua classe,
segundo o instituto. Os demais modelos vendidos aqui não aparecem
nas tabelas da J.D. Power (o I30 nem poderia, pois não existe nos
EUA), mas suas notas no mesmo estudo de 2009 variam entre o bom 4 do
Santa Fe e o desprezível 2,5 do Veracruz, passando pelo 3,5 do
Azera.
O filtro de mentiras, portanto, é hoje uma necessidade que o mercado
de informática precisa atender com urgência. Mas é bom que se
reserve um grande espaço para o arquivo de informações suspeitas que
o programa venha a filtrar. Em se tratando da Hyundai-Caoa, não vai
faltar conteúdo com tarja vermelha. |
No estudo de
qualidade, o Tucson está em 23º lugar entre 23 utilitários. Ou seja,
o "melhor" é na verdade o pior de sua classe, segundo o instituto. |