Com tarja vermelha

Se um dia for inventado um detector de mentiras para anúncios,
é certo que a Hyundai-Caoa terá um grande conteúdo barrado

por Fabrício Samahá

Há mais de dois anos, na edição nº 256, comentei neste espaço algumas inverdades que a indústria automobilística insistia em apresentar e que — se fosse possível inventar um, claro — ficariam retidas no "detector de mentiras" acoplado ao programa de e-mail do computador. Desde então as falsas informações, veiculadas sobretudo pela publicidade, não diminuíram e talvez estejam ainda mais frequentes, o que tornaria especialmente útil o tal detector para se ler jornais, assistir à TV ou navegar pela internet.

E posso apostar que boa parte do conteúdo considerado suspeito viria da mesma fonte: a Hyundai-Caoa, empresa que importa para o Brasil os carros da sul-coreana Hyundai e fabrica caminhões leves em Anápolis, GO.

Começarei pelo hatch médio I30. Logo abaixo de seu nome, nos anúncios impressos, aparece a menção "2.0 CVVT 145 CV - Câmbio automático multimarchas". Em se tratando de caixa automática, "multimarchas" leva a entender um número de marchas acima do normal e, quando se lê CVVT tão perto, é fácil se lembrar de CVT, a caixa de variação contínua usada no Nissan Sentra, entre outros, que produz o efeito de marchas infinitas dentro dos limites definidos pelo fabricante. Portanto, conclui o consumidor, o I30 deve ter CVT, certo? Errado. A sigla CVVT refere-se à variação de tempo de válvulas do motor e não tem nada com o câmbio. Ao menos o "multimarchas" — já que o prefixo "multi" significa grande número — indicaria um câmbio automático de seis marchas? Também não. São apenas quatro, o mínimo usado hoje e o mesmo número do Dodge Polara automático de 30 anos atrás.

O anúncio do I30, como é habitual na empresa, também traz uma vasta lista de equipamentos do veículo, como oito bolsas infláveis e controle de estabilidade. São duas bolsas frontais, duas laterais e duas cortinas, em total de oito. Oito? Sim, na conta da Hyundai-Caoa e de mais uma ou outra empresa do ramo. Quando questionamos uma delas (por um contato na Mitsubishi), anos atrás, a resposta foi que as duas cortinas valiam por quatro, por proteger tanto ocupantes dos bancos dianteiros quanto do traseiro. Nesse caso, a bolsa frontal, a lateral e a cortina que atuam junto ao motorista não deveriam ser contadas como uma só?

Ainda sobre equipamentos, ficaram famosos casos de clientes que, acreditando na publicidade e no que ouviram de vendedores, compraram o I30, pagaram por todo aquele conteúdo e levaram para casa um carro bem menos dotado, às vezes sem itens de valor elevado como o controle de estabilidade. Um desses clientes, o leitor Ronaldo Uliana de Oliveira, escreveu ao Best Cars e teve sua reclamação enviada à assessoria de imprensa da Caoa, que não se manifestou.

O mesmo I30 serviu para uma curiosa manobra envolvendo a imprensa. Desde o ano passado, a Caoa anunciou que o hatch chegaria por cerca de R$ 59 mil com os equipamentos de segurança citados e vários outros itens. Até o início efetivo de vendas, o real ganhou e perdeu valor, mas a empresa manteve o preço anunciado quando cedeu o carro para avaliação de algumas revistas. Quatro Rodas chegou a lhe atribuir a vitória em um comparativo de médios, tendo como base o preço citado. Só que, quando os interessados foram às concessionárias atrás da pechincha, descobriram que grande parte do conteúdo era cobrado à parte e que, com todos os itens que supostamente viriam de série, o preço de verdade tornava-se quase R$ 20 mil mais alto — fato confirmado pela própria revista um mês depois. Claro que a importadora usou, pelo tempo que pôde, o comparativo em sua publicidade para atrair mais incautos.

Na propaganda de outro modelo importado pela Caoa, o utilitário esporte Tucson, a citação aos "oito airbags" também está presente, mas há mais. Há várias semanas o modelo importado da Coreia do Sul — onde está saindo de produção para ceder lugar ao IX35 — é anunciado como "made in Brazil", embora a produção em Anápolis nem sequer tenha começado. O exercício de futurologia vai além. Abaixo do "made in Brazil", a Hyundai-Caoa anuncia que "em breve, o Tucson nacional será exportado para os EUA, Europa e todo o planeta".

Será mesmo? Mercados desenvolvidos e exigentes não costumam aceitar produtos defasados, já substituídos por novas gerações no país de origem, como o Tucson. Também para Quatro Rodas, a empresa mudou bastante o discurso ao falar em "um feeling" de que fecharia contratos para vender o modelo na América Latina e na Europa. Como feeling é apenas uma expectativa, cria-se um abismo entre o que garante o anúncio e o que realmente pretende a empresa.

Fabrício Samahá, editor

Pesquisa do J.D. Power
Tudo isso se refere ao que a Hyundai-Caoa anuncia no presente, mesmo após tanta repercussão de propagandas anteriores com inverdades e distorções. No ano passado a fundação Proteste notificou-a por divulgar como itens de série, no modelo Veracruz, recursos que não estariam disponíveis no mercado brasileiro. Depois o Tucson foi anunciado como líder da categoria, em uma lista que "esquecia" o Sportage da empresa-irmã (na Coreia) e concorrente direta (no Brasil) Kia, levando esta marca a protestar ao Conar, Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. Este ano, a menção à mesma Kia foi "esquecida" quando a Hyundai divulgou ter superado a Ford em vendas mundiais no primeiro semestre — vitória que só acontecia quando os números de Hyundai e Kia eram somados.

E há a já famosa questão dos títulos de qualidade relacionados ao J.D. Power, um instituto de pesquisa independente dos EUA. Segundo a Caoa, a Hyundai seria "a melhor dos USA em qualidade (...), superando BMW, Honda, Toyota, Audi e todas as outras marcas". Num desses anúncios do Azera e do Tucson, no jornal Folha de S.Paulo, vê-se um asterisco junto à frase, mas não há observação a respeito em toda a página. Encontrei-a na página ao lado, a do I30: o título refere-se ao estudo inicial de qualidade pelo instituto, que analisa defeitos nos três primeiros meses de uso do carro, e o título de "melhor" deixa de lado marcas consideradas "exclusivas" pela Hyundai-Caoa — Lexus, Porsche e Cadillac —, que tiveram melhor colocação que a dela na pesquisa. Se for considerado o estudo de confiabilidade após três anos de uso do mesmo J.D. Power, a Hyundai cai para 14º lugar, atrás de Honda, Toyota, Audi (as mesmas que ela diz superar em qualidade) e várias outras marcas, "exclusivas" ou populares. Se você fica só três meses com o carro, pode desprezar o segundo estudo...

Um ponto importante é que a pesquisa se refere ao leque de modelos da Hyundai vendidos nos EUA, que inclui o pequeno Accent, o médio Elantra e o grande Genesis — nenhum deles disponível hoje no Brasil. Os dois últimos foram os melhores de suas categorias no estudo de 2009, o que levou a marca à boa posição na tabela geral. No entanto, o que importa é o que existe no mercado brasileiro, certo?

No mesmo estudo de qualidade inicial tão alardeado pela importadora, o carro-chefe da marca no Brasil — o Tucson — está em 23º lugar entre 23 utilitários esporte compactos, com nota média 2 entre 5 possíveis. Ou seja, o "melhor" é na verdade o pior de sua classe, segundo o instituto. Os demais modelos vendidos aqui não aparecem nas tabelas da J.D. Power (o I30 nem poderia, pois não existe nos EUA), mas suas notas no mesmo estudo de 2009 variam entre o bom 4 do Santa Fe e o desprezível 2,5 do Veracruz, passando pelo 3,5 do Azera.

O filtro de mentiras, portanto, é hoje uma necessidade que o mercado de informática precisa atender com urgência. Mas é bom que se reserve um grande espaço para o arquivo de informações suspeitas que o programa venha a filtrar. Em se tratando da Hyundai-Caoa, não vai faltar conteúdo com tarja vermelha.

No estudo de qualidade, o Tucson está em 23º lugar entre 23 utilitários. Ou seja, o "melhor" é na verdade o pior de sua classe, segundo o instituto.

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Data de publicação: 21/11/09

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