Quando o barato sai caro

Caso do Fiat Stilo traz de volta ao debate os defeitos crônicos,
de segurança ou não, e como os fabricantes lidam com eles

por Fabrício Samahá

Mal havia baixado a poeira do problema de aceleração involuntária de modelos da Toyota — até agora, oficialmente, restrito aos produzidos nos Estados Unidos — e o assunto convocação, ou recall, voltou a ser comentado nesta semana, agora por uma questão brasileira. A Fiat foi multada em R$ 3 milhões e será obrigada pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) a efetuar a substituição de cubos de roda traseiros de 52 mil unidades do Stilo, componente que teria causado a soltura de rodas e levado a diversos acidentes (30 relacionados ao assunto foram registrados entre 2007 e 2008).

É um caso atípico de convocação, como reconheceu a própria Fiat, porque não partiu da fábrica o reconhecimento do problema, que então a levaria a desenvolver um componente aprimorado, preparar sua rede de concessionárias e convocar os proprietários para o reparo, em cumprimento da exigência legal (assunto bem tratado na coluna Questões de Direito por Arthur Jacon). Neste caso a empresa, que alega não haver defeito no componente, soube da decisão junto do mercado e, naturalmente, precisa de algum tempo para que um componente substituto seja produzido em quantidade suficiente para abastecer a campanha de troca. Como a Fiat contesta o laudo apresentado pelo órgão oficial, muita coisa ainda pode acontecer a respeito do assunto (após a publicação desta edição a Fiat iniciou a convocação; saiba mais).

Não cabe a este editorial analisar quem está certo, se o laudo do Cesvi Brasil (Centro de Experimentação Viária), que aponta defeito nos cubos, ou o laudo da Engenharia da Fiat, que garante não haver qualquer falha de projeto ou de fabricação no componente. Meu objetivo aqui é relembrar fatos relacionados ao assunto convocação e, talvez, destacar algumas lições aprendidas com eles.

Quando se vê a Fiat em meio a essa situação, vem logo à mente o caso dos incêndios no Tipo na década de 1990. Cerca de 100 carros da versão importada da Itália com motor de 1,6 litro (nenhum, ao que consta, com motor 2,0 ou da versão nacionalizada em 1996) apresentaram combustão espontânea, isto é, pegaram fogo por si mesmos, em muitos casos já com motor desligado depois de estacionados e deixados pelos motoristas. O primeiro diagnóstico da Fiat foi de que o fogo vinha de um tubo que conduzia ar quente no compartimento do motor: ele estaria se estragando por lavagens com querosene. No entanto, feita a convocação para troca do tubo, ocorreram novos incêndios em carros que já haviam passado pelo serviço.

Houve então grande pressão pela imprensa e por entidades como a Associação de Vítimas de Incêndio em Tipo (Avitipo), que apontaram problemas na tubulação de direção assistida: submetido a esforços como o de manter o volante todo esterçado por algum tempo, o sistema deixava escapar um pouco do fluido da assistência hidráulica, que entrava em contato com o coletor de escapamento em altíssima temperatura e causava a combustão. Mais tarde a Fiat reconheceu ser essa a causa dos incêndios e fez nova convocação para saná-la. O problema parece ter sido resolvido, mas não antes de comprometer a imagem do carro no mercado — a versão nacional saiu logo de produção e o Tipo, antes um estrondoso sucesso, tornou-se um "mico" entre os usados.

Outro caso polêmico de convocação foi o dos pneus Firestone usados pela Ford norte-americana em utilitários esporte como o Explorer. A separação da banda de rodagem causou centenas de acidentes, muitos deles com capotagem, que levaram a 119 mortes de ocupantes. O fabricante de carros culpava o fornecedor pelo produto, enquanto a Firestone atribuía o problema à pressão de enchimento recomendada pela Ford, 4 lb/pol² menor que a especificada pelo fornecedor. Das primeiras reclamações recebidas pela Firestone a respeito desses pneus até a convocação para sua troca, em 2000, passaram-se quatro anos — e 10 desde o início da fabricação do modelo de pneu. O recall envolveu 6,5 milhões de unidades ainda em uso, dos 14,4 milhões produzidos, e manchou tanto a reputação das duas empresas quanto sua centenária parceria.

Fabrício Samahá, editor

Recall branco
A legislação brasileira, como se sabe, obriga à convocação apenas quando o problema envolve riscos à segurança, mas os fabricantes também fazem campanhas por defeitos de outros tipos. Algumas são efetuadas na surdina, o chamado "recall branco": troca-se o componente em garantia apenas para os clientes que reclamarem a respeito nas concessionárias. Só que anda cada dia mais difícil guardar segredo nesses casos e, com o inestimável apoio da internet, problemas que se queria deixar às escondidas ganham rápida projeção.

Foi o que aconteceu com o caso dos motores Volkswagen VHT de 1,0 litro no ano passado. Depois que cerca de 500 veículos — número divulgado pelo fabricante — apresentaram problemas e o assunto ganhou a imprensa, a fábrica admitiu que havia uma falha de especificação no óleo lubrificante Castrol usado no primeiro enchimento, ainda na fábrica. Sua solução para o problema, chamada de Campanha de Oficina Ativa, foi convidar os proprietários para substituir o tipo de óleo pelo que era usado antes do lançamento da série VHT em 2008, reduzir o intervalo prescrito para troca do lubrificante e estender o prazo de garantia dos motores de três para quatro anos.

Do ponto de vista jurídico, foi o bastante, como comentou à época o colunista Gino Brasil em Questões de Direito. No entanto, se for considerado que o erro na especificação do óleo — não um lote defeituoso de motores ou de lubrificantes — tende a afetar de alguma forma todos os motores abastecidos com ele, a meu ver a VW fez pouco ao decidir não substituir todos os motores, por mais oneroso que se tornasse fazê-lo em 400 mil unidades de Gol, Voyage e Fox. Alardeada como sem custos para o cliente, a campanha na verdade vinha acompanhada de um aumento compulsório nas despesas de manutenção pela troca de óleo mais frequente dali em diante. E lançava um problema aos proprietários: se não fosse seguido o plano de revisões em concessionária pelos quatro anos de garantia do motor, eventual desgaste causado pelo óleo incorreto não seria coberto — condição que vale para qualquer produto, mas que ganhava especial relevância nesse caso de falha reconhecida pelo fabricante.

A VW, ainda assim, não agiu tão mal quanto a General Motors com os numerosos problemas de pistões e anéis do motor VHC de 1,0 litro das linhas Celta, Classic e Corsa, que nunca foram objeto de convocação — os casos foram resolvidos, se foram, apenas quando os clientes reclamaram em garantia. Como vários deles foram tratados por nossa seção Canal Direto e ainda assim ficaram sem solução, é de se imaginar o dissabor pelo qual muita gente passou sem o apoio da imprensa. Apoio que tem surtido resultado em outro defeito crônico, o do rolamento da coluna de direção do Ford Fiesta lançado em 2002. Ainda hoje, clientes com o problema vêm ao Canal Direto pleitear a substituição pelo fabricante, que tem atendido à maioria dos casos. A lista de casos desse tipo é bem maior e afeta a maioria dos fabricantes.

O pior é quando o defeito de projeto ou fabricação afeta um componente sujeito a desgaste natural, como tem acontecido com a embreagem de Astra, Vectra e Zafira. Um conjunto que deveria durar 50, 80, 100 mil quilômetros acaba-se em 10 ou 15 mil km — o Canal Direto, mais uma vez, traz diversos casos — e, quando o proprietário reclama à concessionária ou ao fabricante, recebe a simples desculpa de que embreagem se gasta mesmo e não é coberta pela garantia. Não é muito cômodo? Se a moda pega, um sapato cujo solado duraria alguns anos passa a se acabar em um mês e está tudo certo. Afinal, sola também se gasta com o uso...

Envolvendo ou não a segurança, custando ao cliente alguns reais ou mesmo sua vida, problemas nos veículos podem acontecer — mas devem ser alvo de toda a atenção pelo fabricante em busca de uma solução rápida e satisfatória. Nessa hora, não vale a pena agir como a Ford norte-americana no famoso caso do modelo Pinto fabricado nos anos 70, que se incendiava com facilidade em colisões por um erro de projeto do tanque de combustível. Depois de 117 processos judiciais, a empresa acabou convocando 1,5 milhão de carros para reparo. De acordo com um documento que se atribui à Ford, seus executivos teriam relutado em fazer a convocação porque indenizar os clientes pelos carros queimados, mortes e ferimentos sairia mais barato que reparar os automóveis — mas não imaginavam o quanto seriam pesadas as indenizações impostas pela Justiça.

É quando o barato pode sair
— muito — caro.

Algumas campanhas são efetuadas na surdina, apenas para os clientes que reclamarem a respeito nas concessionárias. Só que anda cada dia mais difícil guardar segredo.

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Data de publicação: 13/3/10

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