Mal havia baixado a poeira do
problema de aceleração involuntária de modelos da Toyota — até
agora, oficialmente, restrito aos produzidos nos Estados Unidos — e
o assunto convocação, ou recall, voltou a ser comentado nesta
semana, agora por uma questão brasileira. A Fiat foi multada em R$ 3
milhões e será obrigada pelo Departamento de Proteção e Defesa do
Consumidor (DPDC) a efetuar a substituição de cubos de
roda traseiros de 52 mil unidades do Stilo, componente que teria causado a soltura de rodas e
levado a diversos acidentes (30 relacionados ao assunto foram
registrados entre 2007 e 2008).
É um caso atípico de convocação, como reconheceu a própria Fiat,
porque não partiu da fábrica o reconhecimento do problema, que então
a levaria a desenvolver um componente aprimorado, preparar sua rede
de concessionárias e convocar os proprietários para o reparo, em
cumprimento da exigência legal (assunto bem tratado na coluna
Questões de Direito
por Arthur Jacon). Neste caso a empresa, que alega não haver defeito
no componente, soube da decisão junto do mercado e, naturalmente,
precisa de algum tempo para que um componente substituto seja produzido em quantidade suficiente para
abastecer a campanha de troca. Como a Fiat contesta o laudo
apresentado pelo órgão oficial, muita coisa ainda pode acontecer a
respeito do assunto (após a publicação desta edição a Fiat iniciou a
convocação; saiba mais).
Não cabe a este editorial analisar quem está certo, se o laudo do
Cesvi Brasil (Centro de Experimentação Viária), que aponta defeito
nos cubos, ou o laudo da Engenharia da Fiat, que garante não haver
qualquer falha de projeto ou de fabricação no componente. Meu
objetivo aqui é relembrar fatos relacionados ao assunto convocação
e, talvez, destacar algumas lições aprendidas com eles.
Quando se vê a Fiat em meio a essa situação, vem logo à mente o caso
dos incêndios no Tipo na
década de 1990. Cerca de 100 carros da versão importada da Itália
com motor de 1,6 litro (nenhum, ao que consta, com motor 2,0 ou da
versão nacionalizada em 1996) apresentaram combustão espontânea,
isto é, pegaram fogo por si mesmos, em muitos casos já com motor
desligado depois de estacionados e deixados pelos motoristas. O
primeiro diagnóstico da Fiat foi de que o fogo vinha de um tubo que
conduzia ar quente no compartimento do motor: ele estaria se
estragando por lavagens com querosene. No entanto, feita a
convocação para troca do tubo, ocorreram novos incêndios em carros
que já haviam passado pelo serviço.
Houve então grande pressão pela imprensa e por entidades como a
Associação de Vítimas de Incêndio em Tipo (Avitipo), que apontaram
problemas na tubulação de direção assistida: submetido a esforços
como o de manter o volante todo esterçado por algum tempo, o sistema
deixava escapar um pouco do fluido da assistência hidráulica, que
entrava em contato com o coletor de escapamento em altíssima
temperatura e causava a combustão. Mais tarde a Fiat reconheceu ser
essa a causa dos incêndios e fez nova convocação para saná-la. O
problema parece ter sido resolvido, mas não antes de comprometer a
imagem do carro no mercado — a versão nacional saiu logo de produção
e o Tipo, antes um estrondoso sucesso, tornou-se um "mico" entre os
usados.
Outro caso polêmico de convocação foi o dos pneus Firestone usados
pela Ford norte-americana em utilitários esporte como o Explorer. A
separação da banda de rodagem causou centenas de acidentes, muitos
deles com capotagem, que levaram a 119 mortes de ocupantes. O
fabricante de carros culpava o fornecedor pelo produto, enquanto a
Firestone atribuía o problema à pressão de enchimento recomendada
pela Ford, 4 lb/pol² menor que a especificada pelo fornecedor. Das
primeiras reclamações recebidas pela Firestone a respeito desses
pneus até a convocação para sua troca, em 2000, passaram-se quatro
anos — e 10 desde o início da fabricação do modelo de pneu. O recall
envolveu 6,5 milhões de unidades ainda em uso, dos 14,4 milhões
produzidos, e manchou tanto a reputação das duas empresas quanto sua
centenária parceria. |
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Recall branco
A legislação brasileira, como se sabe, obriga à convocação
apenas quando o problema envolve riscos à segurança, mas os
fabricantes também fazem campanhas por defeitos de outros tipos.
Algumas são efetuadas na surdina, o chamado "recall branco":
troca-se o componente em garantia apenas para os clientes que
reclamarem a respeito nas concessionárias. Só que anda cada dia mais
difícil guardar segredo nesses casos e, com o inestimável apoio da
internet, problemas que se queria deixar às escondidas ganham rápida
projeção.
Foi o que aconteceu com o caso dos motores Volkswagen VHT de 1,0
litro no ano passado. Depois que cerca de 500 veículos — número
divulgado pelo fabricante — apresentaram problemas e o assunto
ganhou a imprensa, a fábrica admitiu que havia uma falha de
especificação no óleo lubrificante Castrol usado no primeiro
enchimento, ainda na fábrica. Sua solução para o problema, chamada
de Campanha de Oficina Ativa, foi convidar os proprietários para
substituir o tipo de óleo pelo que era usado antes do lançamento da
série VHT em 2008, reduzir o intervalo prescrito para troca do
lubrificante e estender o prazo de garantia dos motores de três para
quatro anos.
Do ponto de vista jurídico, foi o bastante, como comentou à época o
colunista Gino Brasil em Questões
de Direito. No entanto, se for considerado que o erro na
especificação do óleo — não um lote defeituoso de motores ou de
lubrificantes — tende a afetar de alguma forma todos os motores
abastecidos com ele, a meu ver a VW fez pouco ao decidir não
substituir todos os motores, por mais oneroso que se tornasse
fazê-lo em 400 mil unidades de Gol, Voyage e Fox. Alardeada como sem
custos para o cliente, a campanha na verdade vinha acompanhada de um
aumento compulsório nas despesas de manutenção pela troca de óleo
mais frequente dali em diante. E lançava um problema aos
proprietários: se não fosse seguido o plano de revisões em
concessionária pelos quatro anos de garantia do motor, eventual
desgaste causado pelo óleo incorreto não seria coberto — condição
que vale para qualquer produto, mas que ganhava especial relevância
nesse caso de falha reconhecida pelo fabricante.
A VW, ainda assim, não agiu tão mal quanto a General Motors com os
numerosos problemas de pistões e anéis do motor VHC de 1,0 litro das
linhas Celta, Classic e Corsa, que nunca foram objeto de convocação
— os casos foram resolvidos, se foram, apenas quando os clientes
reclamaram em garantia. Como vários deles foram tratados por nossa
seção Canal Direto e ainda assim
ficaram sem solução, é de se imaginar o dissabor pelo qual muita
gente passou sem o apoio da imprensa. Apoio que tem surtido
resultado em outro defeito crônico, o do rolamento da coluna de
direção do Ford Fiesta lançado em 2002. Ainda hoje, clientes com o
problema vêm ao Canal Direto pleitear a substituição pelo
fabricante, que tem atendido à maioria dos casos. A lista de casos
desse tipo é bem maior e afeta a maioria dos fabricantes.
O pior é quando o defeito de projeto ou fabricação afeta um
componente sujeito a desgaste natural, como tem acontecido com a
embreagem de Astra, Vectra e Zafira. Um conjunto que deveria durar
50, 80, 100 mil quilômetros acaba-se em 10 ou 15 mil km — o Canal
Direto, mais uma vez, traz diversos casos — e, quando o
proprietário reclama à concessionária ou ao fabricante, recebe a
simples desculpa de que embreagem se gasta mesmo e não é coberta
pela garantia. Não é muito cômodo? Se a moda pega, um sapato cujo
solado duraria alguns anos passa a se acabar em um mês e está tudo
certo. Afinal, sola também se gasta com o uso...
Envolvendo ou não a segurança, custando ao cliente alguns reais ou
mesmo sua vida, problemas nos veículos podem acontecer — mas devem
ser alvo de toda a atenção pelo fabricante em busca de uma solução
rápida e satisfatória. Nessa hora, não vale a pena agir como a Ford
norte-americana no famoso caso do modelo
Pinto fabricado nos anos 70, que se incendiava com facilidade em
colisões por um erro de projeto do tanque de combustível. Depois de
117 processos judiciais, a empresa acabou convocando 1,5 milhão de
carros para reparo. De acordo com um documento que se atribui à
Ford, seus executivos teriam relutado em fazer a convocação porque
indenizar os clientes pelos carros queimados, mortes e ferimentos
sairia mais barato que reparar os automóveis — mas não imaginavam o
quanto seriam pesadas as indenizações impostas pela Justiça.
É quando o barato pode sair
— muito —
caro. |
Algumas
campanhas são efetuadas na surdina, apenas para os clientes que
reclamarem a respeito nas concessionárias. Só que anda cada dia mais
difícil guardar segredo. |