Enquadrar os automóveis em categorias ou segmentos é algo que tem
ficado cada dia mais difícil, seja pela criação de diferentes tipos
de carros, seja pela interseção entre as divisões por tamanho. Quem
trabalha como eu, no comando de uma mídia especializada no setor,
tem se deparado com essa dificuldade com crescente frequência.
Até 10 ou 15 anos atrás, tudo era relativamente simples: pequenos
eram pequenos, médios eram médios, peruas eram peruas, utilitários
esporte eram utilitários esporte e assim por diante. Só que o
pessoal de marketing das fábricas percebeu a oportunidade de mesclar
categorias ou de tentar elevar a percepção do mercado sobre
determinado modelo, o que naturalmente permite aumentar o preço e os
lucros. Foi quando tudo começou a ficar mais nebuloso.
Veja-se o caso dos utilitários esporte. Os que chegaram com a
abertura das importações, de 1990 em diante, eram sobretudo veículos
aptos ao uso fora de estrada, com suspensões de utilitário e tração
nas quatro rodas. Mas no fim da década vieram opções mais urbanas,
com estrutura monobloco, plataforma
de automóvel, suspensões independentes e até tração apenas
dianteira. Foi a fórmula seguida pela Ford para o primeiro modelo
nacional do gênero, o EcoSport, lançado em 2003. Se em termos
brasileiros a receita permanece exclusiva, de fora vêm muitas opções
dentro do mesmo conceito. Os utilitários de concepção tradicional
são cada vez mais raros.
Ao se considerar que a Ford tinha um utilitário esporte com base em
um automóvel (o Fiesta), por que a concorrência não poderia deixar
seus carros com aspecto fora de estrada? A Fiat vinha fazendo isso
com êxito desde 1999, com a Palio Adventure, e o mesmo foi seguido
pela Volkswagen com o CrossFox, a Peugeot com a 206/207 Escapade (e
agora a mesma versão para o furgão de passageiros Partner), a Nissan
com a Livina X-Gear e a própria Fiat com as versões Adventure de
Idea e Doblò. O que se tem hoje é um segmento com hatch, peruas,
minivans e furgões com proposta de uso semelhante à do utilitário da
Ford, além de preços compatíveis entre si em alguns casos. Como ser
purista e não fazer comparações do EcoSport a vários desses modelos?
Sabe-se que muitos — talvez a grande maioria — apreciam utilitários
não por querer se aventurar por trilhas, mas apenas pela aparência
robusta, imponente ou pela alta posição de dirigir, que confere o
que costumamos chamar de "sensação de domínio do trânsito". Como
tudo fica no terreno das impressões, pouco importa para esse público
se o que há por baixo da carroceria tem ou não aptidão para ir bem
longe do asfalto. Assim surgiu o que se denominou em inglês
crossover, ou cruzamento, um veículo que combina elementos de várias
categorias.
Caso típico é o do BMW Série 5 Gran Turismo que acaba de chegar ao
Brasil: além do formato de hatchback e das maiores dimensões que as
do sedã Série 5, a marca alemã adotou um interior com posição mais
alta para que — com mínimo prejuízo das qualidades dinâmicas que
caracterizam um BMW — o GT pudesse atender aos que buscam "domínio
da estrada". E a inspiração desse hatch veio de um típico crossover,
o X6, talvez o utilitário mais próximo de um cupê esportivo já
concebido.
Falar em cupê faz lembrar os sedãs de quatro portas com perfil
esportivo, cada vez mais comuns. Há os de três volumes, como
Mercedes-Benz CLS — o criador da tendência — e VW Passat CC, e os de
dois, portanto hatches, caso do Audi A5 Sportback. Os fabricantes
gostam de rotulá-los como cupês, nome que se relaciona a veículos
charmosos, menos formais que um sedã e portanto mais apelativos. Mas
cupês são carros de duas portas. Assim, aqui no Best Cars
você sempre lerá que esses são sedãs ou hatches.
Outro cruzamento que tem sido frequente é o de carros convencionais
e minivans. Embora a tendência desses espaçosos monovolumes tenha
esfriado bastante por aqui, em parte pelo envelhecimento dos
produtos — Scénic, Xsara Picasso e Zafira quase nada mudaram em nove
anos —, ainda há bastante interesse em automóveis em que a cabine
avança sobre o compartimento do motor, formando praticamente um
único volume (daí o nome). Só que isso não faz de Fit, Fox, Effa
M100 ou Mercedes-Benz Classe A verdadeiras minivans, pela mesma
razão que Golf e Stilo são hatches e não peruas, mesmo tendo o vidro
traseiro quase vertical.
Não há para isso uma divisão rígida por dimensões, capacidade de
passageiros e carga ou elementos internos, mas sim a análise da
proposta de uso e da identidade visual que separa tais categorias.
Assim, apesar do questionamento de muitos leitores a respeito do Fit
(curiosamente só para ele), tanto o Honda quanto o VW, o Effa e o
Mercedes são considerados hatches em nossa Eleição dos Melhores
Carros. E comparações desses modelos com minivans verdadeiras —
Idea, Meriva, Livina — cabem no Best Cars apenas em casos
específicos, como a ocasião em que confrontamos Fit com câmbio CVT,
Meriva com automatizado e a perua 206 SW com caixa automática. Três
categorias, três tipos de câmbio. |
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"Monocab" de dois volumes
Ainda sobre minivans, vale explicar que o termo vem dos Estados
Unidos, onde há vans (furgões em inglês) ainda maiores e uma grande
Chrysler Town & Country justifica o prefixo de míni... Para nós
seria coerente chamar de minivan apenas os modelos compactos, com
porte não maior que o da Zafira. Na Europa esse termo raramente é
usado: fala-se em MPV, multi-purpose vehicle ou veículo de múltipla
proposta. Faz sentido porque abre possibilidade para que furgões
como o Doblò sejam incluídos.
O que não se pode aceitar é chamar esse Fiat — e até o hatch Kia
Soul — de "monocab", equivalente a monovolume, como fazem a
Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos
Automotores) e as publicações que engolem seus enquadramentos sem
parar para pensar. Alguém imagina um desenho com dois volumes mais
definidos que o do Doblò?
As categorias da Fenabrave, aliás, são um festival de enquadramentos
incompreensíveis. Para a federação, o Mercedes-Benz Classe C é um
sedã pequeno como o Siena e o Prisma, três classes abaixo de
seu concorrente direto BMW Série 3; o Peugeot 207 Passion é
promovido a sedã compacto, ficando junto de Focus e Astra e acima
do Classe C; o Mercedes Classe E é apenas sedã médio, ao lado do
Linea e do Chery Cielo; e a Audi A4 Avant concorre com Palio Weekend
e Parati entre as peruas "médias", em categoria abaixo da bem mais
barata Peugeot 307 SW (que é "grande" para a Fenabrave).
O que nos leva à discussão sobre tamanhos. Alguma confusão sempre
existiu nesse campo, pois décadas atrás já tínhamos carros de
diferentes portes disputando a mesma faixa de mercado. Era o caso do
maiorzinho Chevette, ao lado dos menores Fiat 147 (depois Uno) e
Gol, ou do Escort de primeira geração (com o sufixo Hobby) junto das
versões 1.000 dos mesmos Gol e Uno. Mais para trás, nos anos 70 o
Dodge 1800 tinha preço semelhante ao de Corcel, Chevette e
Volkswagen TL, embora fosse maior nas dimensões e na cilindrada.
Com o lançamento do Vectra de 1996 — considerado um médio-grande ou
segmento M2 pelo critério europeu —, várias marcas passaram a trazer
carros médio-pequenos ou M1 para tentar alcançar o mesmo segmento,
como Marea, Mégane, Civic e Corolla. Como outros verdadeiros M2
(como Ford Mondeo e VW Passat) eram importados e estavam bem mais
caros desde a alta do dólar em 1999, foi natural para a imprensa
colocar os M1 na mesma faixa do Vectra em seus comparativos. Mas os
números não mentem e, quando analisados com o devido critério, o M1
ficavam para trás em espaço na comparação com o carro da GM.
Hoje há outra situação entre os sedãs, por conta de modelos pouco
maiores que os pequenos tradicionais, como City, Linea e o novo
Fiesta que virá em breve do México. Não são do mesmo tamanho dos
médio-pequenos atuais como Civic, Corolla e Focus, mas também não
devem ser comparados à categoria inferior de Siena, Voyage, Polo,
Fiesta nacional. Cria-se então um meio segmento entre os existentes
e, quando se pretende fazer um comparativo com mais opções, é
inevitável avançar em outra categoria, respeitando o importante
critério da faixa de preço. É o que fizemos em duas oportunidades em
que o caro City enfrentou modelos maiores. Como no caso dos
oponentes ao Vectra, as limitações de espaço logo se manifestam.
Como se vê, não é tarefa fácil manter a separação dos carros em
categorias. Para alguns ela pode parecer um capricho inútil, já que
o consumidor tende a escolher pelo dinheiro que tem para gastar (e
muitas vezes o faz com surpreendente variedade de opções), não pelo
enquadramento feito pelos técnicos... Mas sempre haverá a
necessidade de distinguir os segmentos, seja para encontrar opções
para um comparativo, seja para confrontar resultados de vendas, seja
para realizar pesquisas de opinião de uma maneira justa com todos os
concorrentes. |
O que não se
pode aceitar é chamar o Doblò de "monocab" ou monovolume, como fazem
a Fenabrave e as publicações que engolem seus enquadramentos sem
parar para pensar. |