O
logotipo da Fiat está na frente, na traseira, no volante, assim como
é assinada pela marca a calibração das suspensões para o piso
brasileiro. Mas, ao dirigir o
Freemont — lançamento
da marca que avaliamos nesta edição —, não resta dúvida se tratar de
um Chrysler. De fato, ele constitui uma "engenharia de logotipo",
como dizem os norte-americanos, a partir do Dodge Journey já
conhecido por aqui.
Apesar da intervenções pelas Fiats italiana e brasileira, o
utilitário esporte tem toda a essência do grupo que os italianos
adquiriram, e nem poderia ser diferente. O motor de 2,4 litros e o
câmbio são da Chrysler, assim como foi todo o projeto do modelo,
anterior à compra. Mesmo no interior, com um bonito painel que a
Fiat diz atender ao gosto europeu (de fato, o antigo usado pela
Dodge deixava muito a desejar), os traços norte-americanos estão por
todo lado, do freio de estacionamento acionado por pedal à alavanca
unificada à esquerda da coluna de direção, passando pelas trocas de
marcha manuais da caixa automática feitas para os lados.
O que acontece com o Freemont é mais um efeito das fusões e
aquisições de fabricantes, que têm acontecido com frequência mundo
afora e trazido resultados tanto à indústria quanto ao consumidor.
Para ela, a indústria, há a vantagem de reduzir custos pelo
compartilhamento de projetos e a produção de componentes em maior
escala. Nós, os consumidores, algumas vezes saímos ganhando com
isso; outras, não.
O que se pode perder com as fusões? A identidade dos carros. Um dia,
cada marca adotava em seus modelos um conjunto de características
que os fazia diferentes da concorrência. Fosse um motor "nervoso",
que gostasse de alta rotação; fossem a posição e o funcionamento dos
comandos; fossem o acerto da suspensão mais para firme ou para
macia, a direção mais rápida ou mais lenta, os freios mais imediatos
ou mais "esponjosos".
Embora muitos desses elementos possam ser ajustados de maneira
específica pelas marcas para atender a seus princípios e sua
tradição, os carros que resultam de parcerias e fusões não raro
privilegiam a identidade de um fabricante em detrimento do outro ou
dos outros. Ou mesmo tentam misturar características e acabam em um
meio-termo que não atende nem a um lado, nem a outro.
Pode parecer antiquado falar nisso no atual cenário globalizado, em
que carros são projetados para atender a gostos os mais diversos, de
um norte-americano que dirige em largas avenidas e mal se preocupa
com o consumo até um japonês ou europeu que se aperta pelas ruas,
desfruta estradas excelentes e paga muito caro pelo combustível,
passando por um brasileiro que enfrenta pisos entre os piores do
mundo e... também paga muito caro pelos combustíveis, como bem
sabemos. Mas, para os aficionados por automóveis, o assunto é
plenamente atual.
Os menos jovens devem se lembrar do Volkswagen Apollo e do Ford
Versailles, frutos da Autolatina — associação entre as marcas que
vigorou entre 1987 e 1994, no Brasil e na Argentina — derivados do
Ford Verona e do VW Santana, na ordem. Além de alterações visuais
por fora e por dentro, as empresas fizeram intervenções técnicas
como bancos mais macios, no caso do Versailles, e câmbio mais curto
e amortecedores mais firmes, no caso do Apollo, para tentar seguir o
que cada marca valorizava e oferecia em outros modelos.
Deu certo? Não. Em uma época em que a identidade do fabricante
estava bem mais evidente aos brasileiros, pelo pequeno número de
marcas e modelos, tanto Apollo quanto Versailles foram recebidos com
restrições pelos clientes tradicionais de cada uma. Nem mesmo a
dupla Logus/Pointer da VW, desenvolvida depois a partir do Escort e
com modificações mais abrangentes — não havia painéis de carroceria
em comum com o modelo de origem —, conseguiu emplacar. E muito disso
pode ser atribuído à descaracterização do que um VW ou um Ford
deveria ser. |
Tudo, menos Chevrolet
Houve casos semelhantes mais tarde, apesar de não ter ocorrido
outra fusão do porte da Autolatina na indústria local de automóveis.
Quando a General Motors passou a importar da Argentina o utilitário
esporte Tracker, ficou claro a quem o dirigisse que aquele não era
um Chevrolet, apesar da gravata-borboleta na grade — de fato, era um
Suzuki Grand Vitara, com o detalhe de ter usado motores a diesel da
Mazda e da Peugeot. Não havia no modelo qualquer elemento, visível
ou perceptível, que se esperasse encontrar em um carro da GM. É
difícil saber o quanto isso influiu, mas o Tracker nunca obteve
êxito.
Pouco depois vieram os vários Fiats — do Palio ao Stilo, passando
por Idea e Punto — com o motor GM de 1,8 litro, fruto da associação
das empresas em âmbito mundial. A mistura resolveu um problema para
a Fiat (substituir o motor 1,6 de 16 válvulas importado da Itália em
um momento de dólar supervalorizado) e trouxe benefício à parcela
dos consumidores que procura apenas um motor simples, robusto e com
bom torque em baixa rotação. Só que a Fiat virou as costas para os
amantes do tempero esportivo sempre associado aos motores italianos,
que gostam de "girar" com um ronco que entusiasma... como o
1,6-litro substituído.
A questão, claro, não fica restrita ao mercado brasileiro. A Audi
poderia não ter chegado aonde chegou sem o suporte da VW, mas seus
melhores carros são aqueles que menos compartilham componentes com
os "primos mais pobres". Caso típico foi a primeira geração do
esportivo TT, limitada em comportamento dinâmico por usar a
plataforma comum a Golf, New Beetle e até um prosaico Skoda. Em
contrapartida, quando a VW fez sua versão simplificada do Audi A8 —
o Phaeton —, não conseguiu sucesso porque o preço foi julgado
excessivo, sobretudo nos Estados Unidos, para um carro com logotipo
tão popular.
A absorção por um grande grupo também maculou a identidade de outras
marcas. Que o digam os fãs da Alfa Romeo, que tiveram de abrir mão
da tração traseira — tão associada a seus carros quanto ainda é hoje
aos da BMW — depois da compra pela Fiat. Como se não bastasse, o
casamento do grupo com a GM impôs aos "alfisti" um filho bastardo, o
uso do motor Opel/Holden de 3,2 litros no 159, no Brera e no Spider,
em lugar do carismático V6 original da marca.
Na Jaguar, em que pese os avanços em qualidade durante o período de
comando da Ford, a tração traseira foi abandonada no modelo de
entrada X-Type, que usava a plataforma de um carro "plebeu", o Ford
Mondeo. A empresa até aplicou tração integral nas versões iniciais,
para tentar evitar o comportamento de um carro com tração dianteira
e melhorar suas chances diante de clientes tradicionais, mas não
conseguiu passar da metade do volume de vendas anual que projetava.
Não menos marcante é o caso da Citroën, adquirida nos anos 70 pela
Peugeot e que desde então vem perdendo a forte identidade do
passado. Embora ainda produza modelos com estilo ousado e suspensão
hidroativa, vários de seus carros poderiam rodar com o logotipo de
outra marca sem causar surpresa — o que jamais aconteceria com
qualquer automóvel de seu período independente. E o desenho do atual
C5, por mais bonito que seja, está mais para alemão que para
francês.
Parece inevitável que as fusões e parcerias continuem a surgir,
mesmo com o fracasso de algumas das mais relevantes do período
recente, como a GM-Fiat e a DaimlerChrysler. Mas, enquanto foca um
olho nas vantagens financeiras, cada empresa deve manter o outro em
sua tradição, sua identidade; em síntese, aquilo que a faz especial
e diferente de todas as outras. |
Não havia
qualquer elemento, visível ou perceptível, que se esperasse
encontrar em um carro da GM. É difícil saber o quanto isso influiu,
mas o Tracker nunca obteve êxito. |