Semanas atrás, alguns colegas jornalistas escolheram um tema para
trazer ao debate entre seus leitores: o (alto) preço dos carros no
Brasil. Deu-se até nome ao fator que explicaria por que os
automóveis são tão caros por aqui quando comparados a outros
mercados: "lucro Brasil", uma variação do tradicional "custo Brasil"
apresentado por fabricantes como obstáculo para que os carros custem
menos.
Ou seja, os preços seriam altos não por — ou apenas por — serem
pressionados por impostos, encargos trabalhistas e dificuldades
diversas, mas porque as margens de lucro aqui estariam entre as
maiores do mundo.
A reação natural de muitas pessoas, ao ler reportagens como essas —
matérias que têm todo o mérito, friso —, é querer "abrir as caixas
pretas" dos fabricantes, no sentido de ter acesso aos custos
efetivos de produção de um carro, aos demais custos relacionados e,
afinal, à margem de lucro colocada para se chegar ao preço de venda.
O que me pergunto quando vejo esse interesse é: que diferença faz?
Sim, porque empresas fabricantes de veículos, como de qualquer bem
de consumo, não são entidades filantrópicas: são organizações com
fins lucrativos, que têm acionistas e a eles prestam contas. Como
qualquer empresa, elas têm como objetivo obter o maior lucro
possível, e um dos caminhos para isso é vender seus produtos ao
maior preço que o consumidor aceitar pagar.
Muitos ainda têm a noção de que o preço de um produto qualquer está
diretamente vinculado a seu custo de produção. De fato está, mas
apenas como mínimo: nenhuma empresa venderia um produto por menos
que o necessário para cobrir as despesas envolvidas — impostos
inclusive — até que ele chegue às mãos do consumidor. Se algumas
podem eventualmente vender abaixo do preço de custo, trata-se de
estratégia para ganhar mercado, o que no jargão comercial se conhece
por dumping. É a exceção, não a regra.
Atendido o preço mínimo, o valor efetivo para venda será, é claro, o
máximo que o consumidor aceitar. E, se ele assim aceita, pouco
importa se a concorrência oferece produtos equivalentes ou até
melhores por menos, se no exterior o mesmo produto — ou um superior
— é muito mais barato, se a margem de lucro está muito acima dos
padrões internacionais. Infelizmente para alguns, felizmente para
outros, esse é o capitalismo e é assim que nele as coisas funcionam. |
Custos e preços
Alguns exemplos mostram como o preço de mercado não tem relação
direta com os custos de fabricação. A linha Volkswagen conta com
dois modelos dotados do mesmo conjunto motor-câmbio, com dotação de
equipamentos não muito diferente e, de certo modo, baseados na mesma
arquitetura: o Jetta Highline, importado do México, e o Passat,
trazido da Alemanha.
O Jetta tem preço sugerido de R$ 89.520, e o Passat, de R$ 106.700,
sem opcionais. Uma distinção de valores que me parece coerente com o
segmento que cada um ocupa no mercado, pois entre os sedãs deve
existir um degrau razoável para evitar concorrência interna, mas não
tão grande que torne o segundo pouco atraente diante das
alternativas que o mercado oferece.
O detalhe a ser observado é que por vir do México, país com o qual o
Brasil mantém acordo comercial, o Jetta fica praticamente isento do
Imposto de Importação de 35% que recai sobre o Passat. A simples
adição de 35% ao preço do Jetta — caso ele viesse da Alemanha — o
levaria a mais de R$ 120 mil.
O que se conclui desse cálculo? Simples, que a margem de lucro na
venda do Jetta é bem maior que a do Passat. É natural: os preços
sugeridos refletem o que a VW entende que o mercado aceita pagar por
cada modelo, diante do que eles oferecem, de seu maior ou menor
atrativo de novidade e das opções da concorrência. O custo envolvido
para colocá-los nas concessionárias — bem menor no Jetta pela
isenção do imposto — é um mero detalhe na definição dos preços
finais.
Falei em atrativo de novidade, outro fator bastante relevante. Vamos
a outro exemplo. A Hyundai-Caoa importa da Coreia do Sul os sedãs
Azera e Sonata, o primeiro com motor V6 de 3,3 litros, por R$ 75
mil, e o segundo com motor de quatro cilindros e 2,4 litros, por R$
105 mil. Você pode comparar os equipamentos de série, as fichas
técnicas ou qualquer outro elemento de decisão racional e não
encontrará uma razão para que o Sonata custe R$ 30 mil a mais que o
Azera.
No entanto, basta olhar para cada um deles para entender o motivo:
enquanto um está em sua juventude, com linhas modernas que atraem
consumidores para as lojas, o outro mostra-se em fim de carreira —
uma nova geração está por chegar — e precisa recorrer ao baixo preço
para compensar essa deficiência. Se são 10, 20 ou 30 mil de
diferença, o mercado decide. Em certo momento, pode ser que o estilo
do Sonata deixe de seduzir e que as vendas caiam. O que a
Hyundai-Caoa fará de imediato? Reduzir o preço, como já fez no
passado com o Tucson e o próprio Azera quando a concorrência se
fortaleceu.
Tudo é questão, como se vê, do que o pessoal de marketing chama de
posicionamento de mercado: em que segmento se consegue encaixar o
automóvel do ponto de vista do consumidor, que muitas vezes enxerga
os elementos de maneira bem diversa de um aficionado pelo assunto. O
que nos leva a mais um bom exemplo.
Quando a Citroën apresentou a C3 Picasso, em maio, um fator chamou
mais a atenção que as próprias mudanças feitas na C3 Aircross — que
nasceu primeiro aqui, embora só a Picasso existisse antes na Europa
— para perder o jeito "aventureiro": o preço. Na versão
intermediária GLX com câmbio manual, a Picasso custa R$ 50.900,
enquanto a mesma opção da Aircross (que agora é a básica, tendo a GL
saído de produção) vai a R$ 56.850, sem diferença expressiva em
termos de equipamentos de série.
Quase R$ 6 mil por mais alguns centímetros de altura livre do solo e
um estepe pendurado na traseira? Sim, pode-se resumir dessa forma
para os adeptos da compra racional. Mas poucos compram carros com a
razão à frente da emoção e, para a maioria, a Aircross parece valer
o que custa acima da "irmã comportada", a julgar por seu volume de
vendas mais alto. Até porque a concorrência mais próxima do modelo
"aventureiro" da Citroën — Fiat Idea Adventure, Ford EcoSport, a
nova VW SpaceCross — tem faixa de preço semelhante à dele e superior
à de modelos sem a caracterização fora-de-estrada.
Na questão do posicionamento, vale o que Paulo Kakinoff (hoje
presidente da Audi no Brasil) explicava em suas entrevistas
coletivas quando diretor de Marketing da VW, anos atrás. Contava ele
que o mercado pode ser dividido em três ou quatro grupos, cada qual
com seu modo de ver o automóvel, e que um deles é o "atraído por
imagem", aquele que se interessa muito pela aparência e pelo que o
carro demonstra sobre seu dono a quem o vê. Há uma clara diferença
nesse aspecto entre C3 Picasso e Aircross — como há entre outros
modelos com e sem o pacote "aventureiro" — e é natural que os
fabricantes, diante disso, proponham preços diversos para produtos
que custam quase o mesmo para produzir.
No fim das contas, tudo depende de um só personagem: o consumidor,
com seu direito de decidir — conforme considere justo ou não o preço
— entre comprar este carro, optar por aquele ou virar as costas e
não levar nenhum. |
O valor será o
máximo que o consumidor aceitar. E, se ele assim aceita, pouco
importa se a margem de lucro está muito acima dos padrões. |