Entre arranjos e desarranjos, para onde vai a indústria?

Carro Micro e Macro

A competição por emprego e renda — e contra os sindicatos — esfarelou o arranjo produtivo das fábricas de automóveis

 

Detroit foi a capital do automóvel nos Estados Unidos; São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul (SP) detinham o título no Brasil. Mesmo a primeira fábrica da Ford ficava no Ipiranga, na capital paulista, assim como a Vemag. A Pirelli estava em Santo André, de sorte que o ABC continha 70% da fabricação de peças e montagem de veículos do Brasil. Stuttgart, Munique e Ingolstadt formam um triângulo contendo a Mercedes-Benz, a BMW, a Porsche e a Audi, e só Wolfsburg (da Volkswagen) fica um pouco distante, a 520 km. Na Itália, a produção automobilística concentra-se na região de Milão.

Nas últimas décadas, para minimizar o poder dos sindicatos e aproveitar a competição regional para atrair empregos e impostos, assim como para se defender do protecionismo, a indústria de automóveis foi-se espalhando espacialmente. Chegou-se a acreditar que, um dia, peças viriam do mundo inteiro para serem montadas em fábricas extremamente robotizadas. Durante muitos anos previu-se que isso seria um futuro estável, mas a recente extinção da indústria australiana mostrou que esse nirvana não seria atingido. O que aconteceu?

 

Acreditava-se que, um dia, peças viriam do mundo inteiro para serem montadas em fábricas robotizadas, mas isso não será atingido: o que aconteceu?

 

Audi em Ingolstadt: exemplo de fábrica em um dos tradicionais centros da indústria

Production clusters ou, em português, arranjos produtivos são alvo de estudos dos economistas desde o economista escocês Adam Smith. No livro 2 de A Riqueza das Nações (1763), ele descreve um arranjo em que os carroções deixavam a matéria-prima na casa dos operários que, contando com a força de trabalho da família, desenvolviam sua parcela de operações. Seu exemplo eram os pregos, que tinham o arame cortado por uma família e a cabeça e a ponta feitas em outro endereço.

No início do século XIX é que os operários foram postos em fábricas, para que se controlasse sua produção e se estabelecesse o ritmo necessário à otimização. Na década de 1860, graças ao lingotamento contínuo de aço, a adoção da eletricidade e o abandono das máquinas a vapor nas fábricas, a produção realmente explodiu e a administração tornou-se científica. Em momento nenhum, porém, a proximidade entre fornecedores e consumidores de uma mesma cadeia produtiva foi relegada a segundo plano — daí haver cidades industriais em todos os países do mundo, todas elas mais ou menos dedicadas a um setor específico.

Em resumo, a ideia de arranjo produtivo nunca se abandonou. Houve, sim, momentos em que se pensou que isso teria abrangência mundial. Mesmo assim, continuaria a ser um arranjo produtivo, como diria o economista inglês Alfred Marshall em 1903. Tudo caminhava numa direção conhecida até que sucessivas greves, especialmente nos Estados Unidos, provocaram paralisações generalizadas, o que obrigou a indústria a tomar duas direções: expansão territorial da produção e implantação acelerada da automação.

 

 

Produção horizontal

A expansão territorial motivou-se, sobretudo, porque os países que exportaram durante a Segunda Guerra Mundial, graças ao câmbio fixo imposto pelos Estados Unidos via acordo de Bretton Woods (1944), tiveram suas reservas drenadas, financiando indiretamente a reconstrução da Europa por meio do Plano Marshall. Isso, somado à orientação keynesiana (baseada nas ideias do economista inglês John Maynard Keines) dos estruturalistas que estavam nos ministérios da economia dos países subdesenvolvidos, levou a abertura de sucursais, mas não de forma indiscriminada.

Era preciso que houvesse uma indústria precedente que propiciasse o arranjo necessário ao suprimento local de matéria-prima e componentes. Algumas escolheram o Brasil, outras a Argentina e muitas foram até países distantes como a Austrália. Quando a quantidade não justificava, a distância fazia a diferença, mas o arranjo tinha de estar presente. Era o que se chamava de produção horizontal.

Nem governo, nem empresários tinham real consciência da importância dos arranjos, o que motivou um processo de esfacelamento que, no caso brasileiro, pesou demais contra sua competitividade. Por um lado, eram os fabricantes que pressionavam fornecedores de capital nacional por preço, levando-os muitas vezes à bancarrota, na certeza de que sempre haveria quem os almejasse substituir. A rotatividade de fornecedoras de cintos de segurança, lanternas e outros subsistemas sem grande intensidade tecnológica era enorme.

 

A competição entre estados e municípios visou a atrair a indústria via incentivos fiscais e doação de terras para construção de fábricas, começando pela Fiat em Betim

 

Por outro, foi a competição entre estados e municípios visando a atrair a indústria via incentivos fiscais e doação de terras para construção de fábricas. O caso da Fiat em Betim (MG), nos anos 70, foi o primeiro passo nessa direção. Hoje até Catalão e Anápolis, em Goiás, produzem automóveis — Mitsubishi e Suzuki em uma, Hyundai em outra —, o que encarece toda a cadeia a jusante e a montante dela, além de causar distorções como o crescimento desordenado de cidades do interior.

Abriram-se fabricantes mil para a honra do Brasil, reduzindo a escala de produção do conjunto como um todo, apesar de o mercado também ter crescido significativamente no mesmo período. Ao mesmo tempo, a China entrou no mercado de automóveis com um cluster completo baseado em mão de obra barata e matéria-prima subsidiada. Custos de transporte ao longo da cadeia produtiva deixaram de ser insignificantes perante essa hecatombe. Nem mesmo a automação acelerada foi capaz de reverter a necessidade de competitividade do cluster local, afastando a ideia de que um arranjo produtivo mundial seria o paradigma da eficiência.

A General Motors fechou sua fábrica no Chile em 2008, pouco antes da crise mundial, sob a alegação de que não havia nem mercado nem cluster capaz de justificar a fabricação local. Agora foi a vez de a Austrália seguir o mesmo caminho, encerrando unidades da Ford, da General Motors (Holden) e da Toyota. O Uruguai monta automóveis baseados exclusivamente no Mercosul, dependendo dos clusters argentino e brasileiro, num arranjo regional cuja estabilidade depende do cumprimento de acordos que estão sempre sob fogo cruzado.

Ao ver do autor, se o Brasil pretende manter-se entre os maiores produtores de veículos do mundo, não se pode basear somente no tamanho de seu mercado, muito menos na extensão continental de seu território. É preciso reconstruir o arranjo produtivo que atraiu a indústria para cá, mas respeitando o momento histórico atual, tanto em relação à tecnologia quanto no que concerne à agregação de valor.

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A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars

 

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