A atualização tecnológica depende de credibilidade e transparência, mas ambas foram solapadas no Brasil
Tenho na cabeça uma fotografia que vi na revista O Cruzeiro, nos anos 1960, em que um conjunto de homens totalmente cobertos com um pano branco, com somente buracos para os olhos, confabulava à volta de uma mesa. Não me lembro bem se era uma seita ou alguma sociedade secreta. Essa fotografia sempre me volta à mente quando penso ou falo sobre nossa indústria em geral e sobre a automobilística em particular.
Quem me lê quinzenalmente deve estar cansado de ouvir que o pior mal da nossa indústria automobilística é ser um conjunto de caixas pretas, alimentada por uma cadeia de caixas pretas, negociando com o Governo de forma ameaçadora e anônima, quase como um bando em formação de black block. Agora essa realidade começou a incomodar a própria indústria porque, graças a privilégios representados por subsídios, renúncia fiscal e reserva de mercado, ela se manteve à tona financeiramente sem a necessidade de se aparelhar para o futuro.
Agora que o mundo está caminhando para a Indústria 4.0, mesmo o que temos de mais moderno é como fundo de quintal aos olhos do século XXI
Por causa disso, como publicou a Revista Fapesp de março, a CNI (Confederação Nacional da Indústria) encomendou a 40 especialistas de várias universidades um estudo chamado de Indústria 2027, para detectar nosso grau de defasagem em relação ao resto do mundo e o que fazer para não afundar. Esse estudo, ainda não concluído, mas que já apresenta resultados preocupantes, considerou 10 ramos industriais, entre eles – e com a devida importância – a cadeia da indústria de automóveis.
Apenas 1,6% de nosso parque industrial – e o setor automobilístico não foge à média – pode considerar-se tecnologicamente atualizado, seja em produto, seja em métodos produtivos. Agora que o mundo está caminhando para a Indústria 4.0, mesmo o que temos de mais moderno é como fundo de quintal aos olhos do século XXI. As instalações contam com equipamentos que mais parecem monjolos para moer farinha ou as almanjarras puxadas por bois para esmagar cana. Nossa mão de obra ainda é vista como um conjunto de tendões e músculos sem cérebro, como descrevia Karl Marx no século XIX.
Atualizar-se tecnologicamente requer investimento em máquinas e homens, o que depende de duas coisas — credibilidade e transparência. Ambas foram solapadas ao transformarem-se as maiores empresas do país em sociedades limitadas que não têm que dar satisfação a ninguém e, por causa disso, não conseguem captar recursos no mercado de capitais, somente no financeiro. O modelo funcionou bem enquanto as linhas de crédito vinham basicamente do BNDES, só que a fonte secou e jogou nossa indústria em um beco.
A herança que o paternalismo estatal deixou não passa de um atraso para cuja atualização os recursos públicos não são, nem de longe, suficientes. O investimento externo também não é infinito e, pior que isso, cada vez mais países competem por atraí-lo, o que se agravou sobremaneira com a entrada da China no mercado internacional.
Mercado de capitais e mercado financeiro não são a mesma coisa, muito embora possam conectar-se. O mercado de capitais canaliza poupança para participação acionária ou de dívida (debêntures) das empresas. É o mercado de capitais, via pulverização da participação, que torna as empresas em entidades sem dono, vivendo por si mesmas e sustentando fundos de pensão e aposentadoria por todo o mundo moderno. O mercado financeiro, por sua vez, canaliza poupança para financiamento, seja de atividade produtiva, seja de antecipação de consumo.
O mercado de capitais visa suprir as necessidades de longo prazo, enquanto o mercado financeiro, baseado em lojas de dinheiro representadas pelos bancos, são limitados em prazo e valor consoante seu patrimônio líquido — haja vista que as instituições financeiras participam do mercado de capitais e precisam, elas próprias, atrair investidores. Em outras palavras, quem investe no mercado de capitais assume, diretamente, o risco das empresas; enquanto quem aplica o dinheiro nos bancos, via CDB (Certificados de Depósito Bancário) ou outros tipos de letras, acredita em que eles sejam capazes de assumir o risco dos valores emprestados a empresas ou consumidores.
Ao que se sabe, o Rota 2030 parece mais do mesmo: financiamento público, renúncia fiscal e entraves burocráticos e tributários às importações
A principal conexão entre os dois mercados são os fundos de investimento em antecipação de receita, que podem operar em qualquer setor econômico, desde o agrícola até o varejo, mas eles acabam por se limitar em valor e prazo, porque o risco pode acabar com o apetite do investidor pelos papéis. Por muito tempo, o BNDES, que se baseia no Fundo de Amparo ao Trabalhador, foi capaz de fornecer os recursos de longo prazo que, por questões societárias da indústria de automóveis, nem o mercado de capitais, nem o mercado financeiro poderiam suprir.
Já não se pode contar com ele porque, em grande parte, seu patrimônio foi desviado para medidas anticíclicas na crise que se abateu no Brasil desde 2013. Somem-se a isso as necessidades prementes de nossa sociedade, especialmente em educação, saúde e segurança, e não sobra espaço para manutenção desse modelo.
Na contramão do óbvio, o Governo traz uma solução negociada a portas fechadas que se chamou Rota 2030 — e que, até onde se sabe, não passa de mais do mesmo com nomes novos. Trata-se de financiamento público, renúncia fiscal e entraves burocráticos e tributários contra as importações, transformando caixas pretas em buracos negros, porque jamais a sociedade saberá qual terá sido o uso de seus recursos apropriados por empresas que não precisam sequer publicar balanços.
Isso não muda em nada o que já vem ocorrendo há mais de 30 anos. O comportamento das empresas continuará, como tem sido, minimalista. O de que precisamos é investimento de verdade, daquele tipo que redunda em modernização do maquinário, formação de mão de obra competente e transferência real de tecnologia; melhor ainda, criação de novas que tornem nosso produto competitivo internacionalmente. A meu ver, o caminho é a abertura, mesmo que forçada, do capital de nossa indústria de automóveis. Como venho insistindo, só assim elas competirão por atrair capital nacional e estrangeiro, em vez de focar o discurso numa pretensa falta de lucratividade que torna perverso o aumento na produção de automóveis.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars