Teorias econômicas explicam por que fábricas, como as de automóveis, se fecham em um país e se abrem em outro
O que dá pra rir dá pra chorar
Questão só de peso e medida
Problema de hora e lugar
Mas tudo são coisas da vida
O samba do grande compositor e amigo de família, Billy Blanco, pode perfeitamente ser aplicado ao verdadeiro passeio que a indústria de automóveis está dando pelo mundo.
Volta e meia, comento sobre fábricas que se fecham ali, como aconteceu na Austrália, e outras que se abrem lá, como vem ocorrendo na China. Os países em vias de serem abandonados esperneiam, enquanto os que recebem essa indústria cigana soltam rojões. Será que tanto pranto de uns e riso de outros são justificáveis?
As vantagens competitivas podem fazer com que uma empresa abandone um país em prol de outro ou mesmo alterar radicalmente a estratégia de todo o mercado
O economista inglês David Ricardo (1772-1823) é muito conhecido pela teoria das vantagens comparativas. Ele usou o acordo comercial entre Portugal e Inglaterra de 1702 como exemplo de que a especialização — Portugal em vinho, Inglaterra em lã —traria vantagens aos dois países porque o nível total de consumo, de parte a parte, aumentaria, beneficiando os dois povos. Mas não foi essa sua única, nem a mais importante, contribuição para o conhecimento de como funciona a vida material da sociedade.
Ele explicou o fenômeno dos rendimentos decrescentes, o que nenhuma teoria até hoje refutou. Para entendê-lo, é preciso considerar que a sociedade de então era primordialmente agrária, apesar de a revolução industrial estar em curso. Ele pensava que as terras seriam cultivadas da mais fértil para a mais fraca, conforme a demanda por comida. Se ela aumentasse, mais terras seriam ocupadas, mas com menor produtividade, o que reduziria o lucro e, consequentemente, o investimento, até que as mais fracas fossem abandonadas e a fome voltasse ao patamar anterior.
Mais tarde, já com a economia baseada na indústria, os economistas neoclássicos disseram que os rendimentos seriam decrescentes porque, quanto maior a oferta, menor o preço, sem a correspondente redução de custos, limitando a quantidade produzida. Mais recentemente, os seguidores de Michael Porter (1947-), engenheiro e economista norte-americano, trocaram a fertilidade da terra pelo conceito das vantagens competitivas aplicado aos mercados como determinante da abrangência das indústrias. Segundo esses economistas, elas podem fazer com que uma empresa abandone um país em prol de outro, ou mesmo alterar radicalmente a estratégia de todo o mercado. O que podemos dizer da migração da indústria de automóveis pelo mundo?
Rivalidade ou cartel?
Lembro-me de que meu vizinho de 1982 a 2009, que trabalhava na General Motors, contava que assistiu uma reunião para decidir se o utilitário Ford Bronco seria ou não produzido no Brasil. Isso é uma demonstração clara de que não havia real rivalidade entre os concorrentes, primeira força de Porter. Na verdade, ao longo do século XX, construíram-se inúmeros acordos como a Volkswagen não ir para a Argentina enquanto a Fiat não viesse para o Brasil, o que se desfez quando se entendeu que o mercado brasileiro é que seria a cabeça de ponte para a América do Sul. Essa rivalidade reacendeu com a entrada do Japão no mercado mundial, mas logo o cartel se refez, como se tem refeito logo após a entrada de um novo participante, como Coreia ou China.
A segunda força, que ele chamou de poder de negociação dos clientes e os economistas sérios chamavam de poder de monopsônio, é obviamente antagônica ao cartel, cuja função é justamente anulá-la.
A terceira força de Porter é o poder de negociação com os fornecedores, o que é tão tendente à indústria de automóveis que já ensejou uma ameaça de locaute mundial contra a Fiat, caso ela continuasse a pressionar os fornecedores por preço, até quebra-los, como foi hábito na indústria brasileira. Graças à escala de produção da indústria de automóveis, sempre houve uma fila de espera para fornecer-lhes de tudo, em especial os itens tecnologicamente mais primários, como os de plástico injetado. Isso mudou muito com a necessidade de comprarem-se subconjuntos ou sistemas completos já prontos, muitas vezes até incorporados ao produto final.
Não havia real rivalidade entre os concorrentes: no século XX fizeram-se acordos como a Volkswagen não ir para a Argentina enquanto a Fiat não viesse para o Brasil
Ameaça de entrada de novos concorrentes passou a real com a introdução da China e seus fabricantes, mas aos poucos vai-se anulando com a tendência ao cartel nessa indústria. A rivalidade mudou de esfera, transpondo-se para os governos dos países que se ressentem de a indústria mudar de endereço, como é o caso dos Estados Unidos, o mais afetado pela saída de empresas rumo ao Oriente, o que não gerou antagonismo nem contra a Coreia, nem contra o Japão. Isso se confirma por algumas absorções e fusões, como a japonesa Isuzu e a coreana Daewoo. Entre as empresas, as coisas se acertam; entre os países, talvez não. A ascensão de Donald Trump ao poder é prova disso.
A quinta força de Porter, ameaça de produtos substitutos, concretizou-se em termos tecnológicos, mas não funcionais, porque carros elétricos não deixam de ser carros e empresas como a norte-americana Tesla e a chinesa NIO são variações da mesma sinfonia. Os carros elétricos tendem a florescer mais pujantemente na China do que no restante do mundo, por conta da inércia que caracteriza os empresários da fabricação de automóveis, mas esse desenvolvimento tende a simbiótico porque, funcionalmente, trata-se do mesmo emprego.
Os que esperneiam — seja aqui, seja nos Estados Unidos — põem a culpa nos impostos, na imigração, na taxa de câmbio supervalorizada, em tudo, menos em si mesmos, com suas idiossincrasias. Os que riem fazem declarações ufanistas enaltecendo sua mão de obra especializada, seus recursos naturais, até sua taxa de câmbio desvalorizada, esquecendo-se de que se trata de uma condição passageira e que, assim que o mercado se acertar, vai assentar suas bases nos mercados mais promissores, da exata forma com que os agricultores voltarão às terras mais férteis, quando o lucro nas que ocupam hoje não forem satisfatórios.
Quem ri hoje pode muito bem chorar amanhã e não há o que impeça esse movimento. A Economia tem suas leis e elas são tão mais rígidas e impositivas quanto mais superlotado e conectado o mundo se encontrar.
P.S.: Pela tradição do Best Cars, esta é minha última matéria do ano, pois a seguinte cairia justamente no dia de Natal. Deixo aqui o desejo de que tudo o de melhor aconteça para nossos leitores no ano que vem e que aproveitem as festas com muita saúde, alegria e responsabilidade.
A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars