Com poucas exigências pela ANTT, empresas de transporte nem sempre oferecem segurança e conforto
Em meados da década de 1960, a Mercedes-Benz veiculou uma propaganda em que um ator, vestido de franciscano, tomava o recém-lançado ônibus monobloco, sentava-se e dormia por toda a viagem. A empresa conseguiu emplacar o bordão “ônibus do padre”. Pudera: o que rodava no Brasil daquele tempo eram GMC do fim dos anos 1940, Scania adaptado de chassi de caminhão e o moderno, mas raro, Magirus Deutz.
Com esse lançamento, vieram outros a partir de encarroçadores como Ciferal, Caio e Marco Polo, que procuravam mostrar inovações em construção com estruturas tubulares e suspensão pneumática com controle mecânico de estabilidade. Testes de tombamento, hoje conhecidos como “teste do desvio do alce” em alusão ao promovido na Suécia, já eram feitos desde os anos 1980. Os eixos multiplicaram-se, o que tornou os carros cada vez mais confortáveis.
A qualidade e o conforto atingiram o auge com os de quatro eixos, sendo os dois dianteiros esterçantes. Com piso baixo e dois andares, quem viajasse no andar térreo gozava de um nível de estabilidade direcional e maciez inimagináveis para um carro de passeio. Não era para menos, visto que as viagens aéreas regionais são proibitivas no Brasil e as dimensões continentais, juntamente com uma indiscutível dependência das estradas de rodagem, garantem uma demanda significativa para as empresas de ônibus.
As dimensões continentais, juntamente com a dependência das estradas de rodagem, garantem uma demanda significativa para as empresas de ônibus
No início deste século, a competição entre ônibus e aviões tornou-se clara. O conforto e, principalmente, a disponibilidade de horários favoreciam o transporte rodoviário. Um bom exemplo eram as viagens de Araçatuba para São Paulo: viajava-se por 10 horas, durante a noite, num carro-leito muito confortável, enquanto que de avião só havia uma empresa com um voo diário, que pousava em Guarulhos em pleno horário de pico. Somando-se o tempo de espera para embarque, trâmites de desembarque, espera para a condução até a capital, chegava-se facilmente a 5 horas pelo quádruplo do preço — e desperdiçando-se meio expediente. Só que esses monumentos sobre rodas não são para todos.
Na medida em que nos afastamos dos grandes centros, mesmo nas regiões mais ricas do País, a qualidade dos ônibus decresce assustadoramente. Desaparecem o ar-condicionado e o apoio para as pernas; o espaço entre as poltronas fica pior que nos aviões; há sempre muito perfume e pouca limpeza, porque a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) só determina que tipo de carro pode rodar, mas não o que mais convém à linha. Some-se a isso um sistema kafkiano de concessões e autorizações que nem mesmo a agência reguladora sabe explicar como funciona, como se percebe por este trecho de minha entrevista com a assessoria de comunicação da ANTT.
Best Cars – Como são concedidas as linhas interestaduais (sob administração da ANTT) que são outorgadas às empresas de ônibus?
ANTT – As linhas são outorgadas por meio de autorização, nos termos da Resolução ANTT nº 4.770/2015. É necessário que a empresa seja detentora de um Termo de Autorização – TAR e, posteriormente, de uma Licença Operacional – LOP que o autoriza a operar os mercados.
BC – Por que, para alguns itinerários há somente uma empresa, eliminando-se a concorrência? Um exemplo é região do Cerrado Mineiro, que é atendida exclusivamente pela Continental do Grupo Gontijo.
ANTT – O número de operadores está determinado pelo art. 70 da Resolução nº 4770/2015: O número de autorizatárias por mercado estará limitado a: I – quantidade de autorizatárias existentes por mercado, considerando a data de entrada em vigência desta resolução; e II – duas transportadoras em cada mercado novo.
Portanto, para os casos em que há apenas uma empresa operando atualmente, possivelmente a razão é ter sempre havido apenas uma empresa, que permanece até hoje. O que não significa que, após concluídos os estudos de viabilidade de mercados, não seja possível a entrada de outros operadores.
BC – Por que, quando se pretende tomar um ônibus interestadual para rodar dentro do estado, é preciso comprar a passagem como sendo da última cidade do estado anterior? Exemplo: se o passageiro estiver em Araxá, MG, e quiser tomar o ônibus da Continental para Ibiá, MG, terá de comprar a passagem a partir de Franca, SP. Se não fizer isso, terá de esperar horas por um carro da São Geraldo que faz a mesma linha, saindo de Uberlândia, MG.
ANTT – A ANTT regulamenta apenas o transporte interestadual e internacional. As empresas reguladas pela ANTT, realizando o transporte interestadual, não estão autorizadas a vender bilhetes para seções intermunicipais. Portanto, caso o passageiro queira adquirir um bilhete intermunicipal (dentro do mesmo estado), deverá adquiri-lo da empresa que possui a outorga deste serviço, que pode ser ou não a mesma empresa que realiza o transporte interestadual.
A empresa decide quando fazer a troca de motoristas: em lugares ermos como a Amazônia, simplesmente não se trocam motoristas à noite por questões de segurança
O passageiro do transporte interestadual poderá embarcar ou desembarcar em qualquer ponto de parada do esquema operacional da linha, sendo que sempre deverá comprar um bilhete interestadual, visto que as empresas não estão autorizadas a realizar serviço intermunicipal.
BC – Considerando a pergunta acima, não será isso uma reserva de mercado, condenando a concorrência e fomentando o transporte clandestino?
ANTT – É preciso deixar claro que, conforme estabeleceu a Constituição de 1988, o transporte intermunicipal é regulamentado pelo estado e o transporte interestadual de passageiros é regulamentado pela União. São esferas diferentes.
Sem dúvida que a Constituição Federal de 1988 desceu a detalhes que tornaram o país engessado, mas não me parece possível que não se possa impor a concorrência simplesmente porque a coisa sempre foi assim. Ao que parece, há espaço para flexibilização, haja vista que compram-se passagens de São Paulo para Araçatuba no mesmo carro que vai a Três Lagoas, sem que se cobre a aquisição de ticket interestadual. Isso se deve, como respondido, a que a mesma empresa detém ambas as autorizações.
Quanto ao monitoramento — que, num país do tamanho do Brasil, é imprescindível —, a ANTT considera que a resolução pertinente que entrou em vigor em 2014 é muito recente e as empresas ainda se estão adequando. Isso tem consequência, por exemplo, na troca de motoristas, que deve ocorrer conforme a escala de trabalho, cabendo à empresa decidir onde isso acontece. Só que, em lugares ermos como a Amazônia, simplesmente não se trocam motoristas à noite por questões de segurança, haja vista que os carros não são monitorados.
A impressão que fica é a de que, apesar da extinção do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) e da criação da ANTT, nada mudou em relação ao que era 20 anos atrás. As empresas continuam as mesmas, trabalhando sob reserva de mercado, o que as torna minimalistas no que tange aos serviços prestados, seja quanto ao equipamento, seja quanto à grade. Produtos de qualidade, temos e exportamos, mas nem sempre usamos. Sorte das empresas de ônibus que a regulamentação do transporte aéreo regional seja igualmente desastrosa e obrigue nosso povo à falta de concorrência.
Naturalmente que a linha tem que ser lucrativa, mas é preciso garantir segurança e conforto mínimos ao passageiro e motorista. E isso nem sempre acontece.
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