Suspensão rebaixada, erro em todos os sentidos

O raspão na lombada é só o começo: a alteração nas
molas desajusta o projeto a ponto de deixar o carro inseguro

 

Numa dessas noites de verão precoce em tempos de aquecimento global, eu conversava com um amigo numa lanchonete à beira de uma avenida de minha cidade quando comecei a observar os carros que passavam. Havia bem a nossa frente uma lombada de perfil médio — nem tão suave quanto manda o desrespeitado Código de Trânsito Brasileiro, nem tão descomunal e agressiva quanto desejam as prefeituras e as associações de bairro que as solicitam a vereadores dia sim, outro também.

A via de mão dupla e pista única permitia reparar nos carros, e logo um chamou a atenção. O velho Gol “bolinha”, de rodas pretas e jeito surrado, vinha com a suspensão bastante rebaixada e fez um sonoro tunc quando seu fundo — talvez não pela primeira vez naquele dia — encontrou o asfalto do redutor de velocidade. Minutos depois, um Golf também mais perto do solo que o normal passava enviesado, devagar quase parando, retendo o tráfego para não raspar da mesma forma. Dali a pouco um Stilo, depois outro Gol tocando a música (música?) do Camaro amarelo — sempre muito mais baixos do que saíram da fábrica, raspando na lombada ou dando trabalho a seus motoristas para que isso não acontecesse.

Não eram muitos carros — 1% do tráfego que vi passar por ali, se muito —, mas o suficiente para eu me perguntar: o que essas pessoas têm em mente quando mandam reduzir em vários centímetros a altura de rodagem de seus automóveis?

 

Ninguém imaginaria um Ferrari tão distante do asfalto quanto um Logan, mas esse é um carro projetado para rasgar estradas a bem mais de 200 km/h, concebido desde o início com tal altura

 

Esse rebaixamento nada tem de novo, vale lembrar. Nos anos 60 e 70, quando o Volkswagen sedã — que mais tarde adotaria o nome popular Fusca — dominava nossas ruas, já havia quem usasse “talas largas”, ou rodas com largura bem maior que a original, associada a uma redução de altura que deixava os pneus traseiros “abertos” embaixo, com câmber negativo, um efeito do tipo de suspensão traseira do modelo. A técnica saiu de moda e a ela voltou muitas vezes nessas décadas, inspirada em carros esporte de alto desempenho e nos de competição.

De fato, o vão livre do solo de um superesportivo é bem menor que o de um carro comum — ninguém imaginaria um Ferrari tão distante do asfalto quanto um Logan. Na recente avaliação do Mercedes-Benz SLS AMG Roadster, feita em ruas e rodovias de nosso uso habitual, pude notar a facilidade com que o fundo toca lombadas de perfil médio, exigindo extremo cuidado para sua transposição. Mas esse é um carro projetado para rasgar as autobahnen alemãs a bem mais de 200 km/h, concebido com tal altura desde que o primeiro engenheiro abriu o programa de desenvolvimento no computador, e certamente não sofreu alterações em suspensão para rodar no Brasil diante do ínfimo volume de vendas previsto. E o Golzinho de rodas pretas, talvez até de motor 1,0-litro?

 

 

Melhor de curva: será?

Há alguns dias, no Salão do Automóvel, conversava com o assessor técnico de imprensa da Fiat, Ricardo Dilser, sobre o programa Techno Day que o fabricante tem realizado para jornalistas. Entre lições teóricas sobre suspensão e assuntos correlatos, a Fiat coloca os profissionais ao volante de dois Bravos: um original, outro com a suspensão rebaixada.

O rebaixamento, explicou Dilser, foi feito como manda o figurino: as molas helicoidais foram removidas do carro, aquecidas, comprimidas até a altura desejada e recolocadas. Ele observou que as práticas mais comuns no mercado estão longe de ser tão criteriosas: há quem corte algumas voltas (“elos”) das molas, o que as deixa mais duras, e até quem use um maçarico para aquecê-las montadas no carro como medida de economia de mão de obra, “cozinhando” junto amortecedores, batentes, buchas e sabe-se o que mais. Que nenhum desses insanos cruze seu caminho ou o meu…

 

Há até quem use um maçarico para aquecê-las montadas no carro, “cozinhando” junto amortecedores, batentes, buchas e sabe-se o que mais

 

Voltando ao teste da imprensa, o assessor conta que os dois Bravos foram postos no mesmo trajeto de avaliação com desvios entre cones para testar os limites de estabilidade. E que ninguém — jornalista, assessor ou mesmo piloto da fábrica — conseguiu repetir com o Bravo rebaixado o tempo obtido com o carro original. O maior problema aparece na fase de transição entre as curvas opostas, quando a roda traseira externa à curva assume posição mais convergente (“aponta para dentro”) por trabalhar em posição diferente da prevista no projeto, como se o carro estivesse muito carregado.

Ou seja, apesar de atingir o intuito de deixar o centro de gravidade mais baixo, o carro com suspensão rebaixada não consegue “fazer mais curva” que o original. Se o piso não tiver boa qualidade, pior: em casos extremos, a suspensão pode chegar ao batente ao encontrar uma ondulação mais acentuada em curva, levando o carro a saltitar e o pneu a perder contato com o solo — um convite à perda de controle.

Com o carro mais baixo perde-se também em precisão de direção, pois as barras do sistema ficam muito inclinadas. No caso de corte de voltas da mola helicoidal o conforto de marcha é sacrificado, pois a mola se torna mais dura (ela é como uma barra de torção, só que enrolada). E ainda se está sujeito a prejuízos os mais diversos, desde desgaste irregular dos pneus até danos à suspensão pelos “fins de curso” frequentes no trabalho da suspensão, passando pelas raspadas em lombadas e valetas que, embora me trouxessem um tema para este Editorial, são apenas o começo do problema.

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