O carro pode não ser o grande vilão que procuramos

Insistimos em responsabilizar o automóvel pelo caos
das metrópoles, mas será ele o verdadeiro culpado por isso?

 

Um século depois, descobriram o vilão da paralisia absoluta que assola as metrópoles brasileiras: o carro. Da mesma forma que o marido traído, aquele que flagra a esposa com outro na cama e opta por… desfazer-se da cama, assistimos a um processo constante, gradual e sem remédio de transformação do automóvel em vilão.

Ele é o culpado pelas ruas e avenidas entupidas, pelo ar cinza e pesado, pelo barulho onipresente do rugido de motores, pela queda na qualidade de vida. Quer deixar de se mover? Compre um carro e viva a triste contradição. As acéfalas lideranças governamentais e não governamentais seguem à risca o primeiro mandamento da cartilha universal da solução de problemas: antes de tudo, aponte um culpado!

Essa acefalia que hipnotiza a sociedade traz consigo uma miopia colateral bem típica, que a impede de imergir no problema e compreender o que, de fato, compõe sua causa. Será mesmo que o motivo da desgraça ambiental do mundo está no carro? Não é possível que aquele delicioso cheiro de carro novo, que adoramos sentir, esteja por trás do caos. Apaixonados por carros, uni-vos!

 

Vemos milhões e milhões de carros por todos os lugares e não há espaço suficiente para tanto aço, plástico e borracha

 

Interessado em assumir a vaga de advogado de defesa, passo a buscar argumentos para meu cliente. Proponho ao leitor-jurado um raciocínio reverso em busca dos verdadeiros vilões da história. É uma verdade incontestável que carro em si não é mau, muito pelo contrário. É uma mão na roda, com o perdão do trocadilho. No entanto, o que entope as cidades não são alguns carros, são milhões de carros.

O excesso: talvez tenhamos aí uma boa pista. Nada em excesso faz bem, nem mesmo aditivo para aumentar a octanagem do combustível. Há milhões e milhões de carros por todos os lugares e não precisamos de uma pesquisa em campo para concluir que não há espaço suficiente para tanto aço, plástico e borracha. O quadro só piora: a cada ano o Brasil produz e vende mais carros novos, em proporção muito maior que o sucateamento de veículos usados.

A grande questão é que somos a sociedade do excesso — o muito não é o bastante. Achávamos que o brasileiro deixaria de comprar tantos automóveis assim que toda a demanda reprimida fosse satisfeita, mas não: nos refestelamos como crianças na doceria. Todos parecem esquecer que carros são bens duráveis e, desde que bem cuidados, podem servir por 10, 20 anos. Mas não: temos que trocar de carro a cada um ou dois anos, não importa o quanto isso custe.

Certo, nem tão pouco nem uma vida toda — essa média de prazo é uma caricatura com finalidade ilustrativa. Mas educa bem: passamos a usar e descartar automóveis como se fossem canetas. O preço é esse que temos aí: cidades repletas de carros, prédios com cinco ou mais vagas de garagem e viagens inúteis como daqui à padaria na esquina. Como cidades repletas de carros são algo que faz mal, consideremos esse excesso uma patologia.

 

 

O papel do marketing

O filósofo francês Gilles Lipovetsky diferencia bem o consumo do consumismo na sociedade de hoje. Essa sensação de vazio permanente, essas efemeridades da moda, a necessidade de se destacar na multidão, de demarcar e reforçar nossa individualidade… e o papel que o marketing assume nisso tudo.

Opa, então temos uma nova pista que possa explicar nossa mania patológica de comprar e descartar carros. É inegável o papel que a comunicação — poderosa ferramenta do marketing — exerce nas interações sociais e na alimentação dos mitos que constroem marcas e produtos. Somos bombardeados por todos os lados pela comunicação de marcas e impelidos a consumir, consumir, consumir… Passamos a enxergar o carro como um elemento social que compõe nossa identidade.

 

Os consumidores da modernidade ficam à deriva num mar de “verdades publicitárias” que preenchem suas lacunas emocionais

 

Ter um carro indica que tipo de pessoa você é; logo, com essa vida cada vez mais confusa, as pessoas transformam-se rapidamente e suas exigências e padrões de consumo, também. Possuir um carro transcende a necessidade de transporte — significa ser livre, ser diferente, ser independente, ter estilo. Você não é ninguém se não possuir um automóvel. Para cada tipo de personalidade, há um carro apropriado.

Junte-se a facilidade para comprar um automóvel e há uma falsa sensação de que adquiri-lo (ou trocá-lo antes do tempo, por modismo ou enfastiamento precoce) é uma atitude parecida a comprar uma nova calça jeans. Os consumidores da modernidade, vazios por dentro, alvos fáceis, ficam à deriva num mar de “verdades publicitárias” que preenchem suas lacunas emocionais, estimulando-os a trocar de carro como se troca de roupa. E então achamos mais uma boa pista de quem possa ser o vilão dessa história: nós mesmos.

Como advogado eu talvez seja um bom publicitário, mas creio ter ficado esclarecido que, se há algum culpado, certamente não é o carro. Parte da complicada vida nas grandes cidades está relacionada a nossa hipnose a todas essas questões. Comprar um carro novo é um momento excitante, mas convém observarmos se estamos sendo guiados pela necessidade ou pelo desejo cego e desmedido.

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