Motos e pilotos não devem ser tratados como problema: a engenharia existe para encontrar soluções
Na infância tive de aprender a conviver com um problema: um primo distante com síndrome de Down. Nos anos 1960 ainda se sabia pouco sobre Down e seus portadores eram chamados de mongoloides, débeis mentais ou retardados. Não sabíamos, por exemplo, que um indivíduo com Down tem necessidade de atividade e que sua força física é maior que a de uma pessoa na mesma faixa de idade funcional. Por isso esse primo acabava machucando as pessoas sem intenção, até que acabou internado em uma clínica, na época chamada de manicômio. E ficou lá até morrer.
O que isso tem a ver com trânsito e as motos? O tratamento. Esse meu parente sempre foi tratado como um problema e se tornou cada vez mais problemático, até ser retirado à força do convívio dos demais. Acontece o mesmo com as motos: são vistas pelas autoridades de trânsito como um problema e o sonho de todo diretor de Detran é que elas desapareçam.
Em toda reunião de que participo com a cúpula do trânsito, os diálogos abrem com a pauta “Temos de resolver o problema das motos”. Motos e motociclistas já são tratados como problemas logo na largada! E depois vai piorando, quando apresentam soluções que só confirmam a tendência de problemizar motos e motociclistas. Sem falar nos representantes da área de Saúde, com suas ironias preconceituosas em classificar os motociclistas como “potenciais doadores de órgãos”.
Se o fluxo de trânsito na marginal ficar abaixo de 40 km/h, o limite continua de 90 km/h, no qual uma moto pode transitar: essa diferença é certeza de acidente
A grande verdade é que as autoridades de trânsito não querem reduzir os acidentes com motos (nem com carros). O que querem, de fato, é a publicidade que as campanhas trazem para seus cargos. Um exemplo recente: o governador de São Paulo anunciou com pompa a criação do Infosiga, instrumento para dimensionar, identificar e qualificar os acidentes de trânsito. Logo em seguida a prefeitura de São Paulo, SP, aumentou a velocidade nas marginais e a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) proibiu a circulação de motos nas marginais em alguns horários. Percebe que uma ação não faz qualquer ligação direta com a outra?
Fóruns de segurança no trânsito não trazem resultado prático quando, dentro desses departamentos, há pessoas que ignoram a existência das motos ou, pior, tratam-nas como problema. Poderia citar dezenas de exemplos, mas vou me concentrar em um recente de São Paulo (peço desculpas por focar uma cidade, mas algumas decisões tomadas aqui refletem-se nas cidades vizinhas e até em outros estados).

O prefeito se viu obrigado a aumentar os limites de velocidade nas marginais, para cumprir sua promessa de campanha, mas se esqueceu de consultar os especialistas. Uma via urbana que atravessa bairros densamente povoados, com trânsito de veículo pesado, buracos, áreas sem acostamento, dezenas de acessos, jamais poderia ter limite de 90 km/h. Vai na contramão de tudo que se defende na segurança de trânsito.
Mas digamos que essa velocidade seja adequada à via. É um sistema viário sujeito a períodos de muito fluxo e outros quase vazios. Se o trânsito ficar abaixo de 40 km/h (há períodos em que a média chega a 8 km/h), o limite de velocidade continua sendo de 90 km/h, no qual uma moto pode transitar. Ora, uma moto a 90 km/h entre carros que estão a 20 km/h é certeza de acidente.
Diante dessa situação o departamento de trânsito poderia:
1) proibir a circulação de motos entre os carros, no chamado corredor; ou
2) estabelecer uma velocidade mais baixa só para as motos; ou
3) proibir a circulação de motos nessas vias.
Nenhuma medida reúne eficiência com respeito ao direito de circulação. A de número 1 já é discutida à exaustão. Alguns estados norte-americanos liberaram o trânsito de motos no corredor para reduzir a chance de um abalroamento, onde o motociclista levaria a pior. A Inglaterra também permitiu, afirmando que é mais seguro. Idem na Espanha. Só que alguns motociclistas vão a 80 km/h no corredor, dentro do limite, entre carros quase parados e acham seguro.
Já a medida 2 teria um efeito colateral grave. Todo órgão de segurança de trânsito sabe — e defende — que motos não podem rodar em velocidade menor do que a do fluxo, porque são veículos de pouca área e fáceis de serem escondidos pelas colunas dos carros. Uma colisão por trás é tudo de que o motociclista mais tem medo. As motos precisam circular na velocidade dos carros, sob risco de virarem alvos ambulantes. Portanto, essa medida não pode ser aplicada.
Finalmente, a medida 3 é aquela que toda autoridade adora diante de uma situação de difícil solução: proibir! Além de cortar o mal pela raiz, ainda gera receita pelas multas aplicadas. Só vai transferir os acidentes de uma via para outra.
Então não tem solução?
Engenharia, olhos e educação
Tem, sim. Existe uma regra internacional quando se discute a segurança de trânsito que consiste de aplicar os 3 “Es”: no inglês seria engineering, eyes and education, onde eyes se refere à fiscalização.
A raiz de tudo está na má formação dos motoristas e motociclistas, mas parece que existe um pacto silencioso de não jogar o holofote nas auto e moto-escolas. Não defendo o ensino de trânsito nas escolas porque não é o escopo — talvez devesse haver a disciplina Cidadania com noções de educação de trânsito. Quem deve ensinar trânsito em parte é a família e parte a auto-escola.
Os departamentos de engenharia parecem esquecer que existem motos nas ruas — basta ver a quantidade de blocos de concreto usados para delimitar canais de trânsito. No Rio de Janeiro cometeram uma aberração nas faixas de ônibus BRT: blocos de concreto capazes de derrubar um motociclista e até provocar acidentes graves com carros. Detalhe: os blocos têm formato de cunha, com a parte mais baixa voltada para os ônibus! Quem foi o louco que criou isso?
Para medir a média de velocidade, pode-se usar o radar que multa por excesso; o painel luminoso amarelo piscante acenderia em caso de limite temporário de 45 km/h

Em São Paulo, em dois importantes corredores de trânsito, foram colocados tacos reflexivos (“olhos de gato”) em vias com iluminação pública. Desprezaram as leis da refração e reflexão, porque sob a luz dos postes os refletores não têm utilidade — mas atrapalham as motos e especialmente scooters de rodas pequenas, que desequilibram ao passar pelos tacos. Em suma, não basta ter engenheiros: precisa-se ter bons engenheiros, que conheçam a dinâmica de uma moto.
Proponho uma solução para equacionar a velocidade dos carros e das motos em vias com trânsito congestionado: adequar o limite de velocidade das motos de acordo com o fluxo de trânsito. Por exemplo, se a média dos carros cair abaixo de 40 km/h, o limite das motos seria de 45 km/h, seguro para andar no corredor e que já representa enorme vantagem. O desafio seria medir essa média e avisar os motociclistas sobre o limite vigente durante um período.
Medir a média de velocidade dos carros é fácil: pode ser feito pelo mesmo radar que multa por excesso. Esses medidores poderiam ser colocados nos relógios/termômetros das principais avenidas. Segundo uma empresa que produz esses relógios, a JC Decaux, o edital de licitação do serviço previa câmeras para monitorar o trânsito, que não foram adotadas por questão de custo. Portanto, esses painéis estão aptos a receber o equipamento. Para avisar o motociclista existe o painel luminoso amarelo piscante, que acenderia em caso de limite temporário de 45 km/h.
Claro que isso demandaria investimento, informação e fiscalização, que esbarram na contratação de efetivos e investimento em equipamentos. Dinheiro tem — basta ver o quanto cada estado arrecada com multas. Engenharia, também tem. Projetos existem. Então o que falta para reduzir os acidentes com motos? Interesse!
Quando as autoridades de trânsito pararem de ver a moto como um problema, ela deixará de ser um problema.
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