Um simples memorando interno (o ancestral do e-mail, para os mais
jovens) de um engenheiro pode mudar o rumo de um empresa.
Zora Arkus-Duntov era um russo de nome
estranhíssimo, que construiu fama na subcultura de preparação de
veículos na Califórnia do pós-guerra. Sua maior criação, antes de
assumir o posto de engenheiro chefe do Corvette, foi o famoso
cabeçote Ardun (ARkus-DUNtov), que podia ser montado em motores
Ford V8 cabeça-chata. Transformava-os não só em motores com
válvulas no cabeçote, mas com válvulas engenhosamente dispostas em
posição simétrica num corte transversal da câmara, fazendo uma
câmara de combustão hemisférica. É impossível não ver a influência
deste motor "de fundo de quintal" no famoso Hemi da Chrysler.
Inclusive, nosso Simca Emi-Sul
era praticamente uma cópia do Ardun, derivado que era o V8
franco-brasileiro de uma versão menor do Ford cabeça-chata.
Conhecendo as ruas americanas muito bem, Zora andava preocupado
com os rumos futuros da empresa que o contratou. O que ele fez a
respeito? Apenas apresentou sua visão sobre o assunto, de forma
clara e honesta, a seu superior imediato. Este desabafo escrito
tomou proporções de lenda entre os chevymaníacos desde
então. Ler este manifesto, hoje, é imaginar como a GM tinha sorte
de ter uma pessoa tão eficaz em analisar o presente, prever o
futuro e bolar uma saída quanto Duntov.
Vamos a ele, na íntegra, então:
"Pensamentos acerca de juventude, hot-rodders e Chevrolet
O movimento hot rod e o interesse em assuntos relacionados
com a preparação e a velocidade ainda continua a crescer. Uma
indicação clara: as publicações devotadas aos hot rods e
preparação, meia dúzia delas com uma circulação enorme e
distribuição nacional, não existiam seis anos atrás.
Da capa à contracapa, elas estão cheias de Fords. Não é surpresa,
então, que a maioria dos hot-rodders está comendo, dormindo
e sonhando com Fords modificados. Eles conhecem as peças Ford de
cima a baixo, melhor do que as pessoas da própria Ford. Um jovem,
comprando uma revista pela primeira vez, imediatamente é
introduzido à Ford. É razoável presumir que, quando os
hot-rodders e pessoas influenciadas pelo movimento compram
transporte, eles compram Ford. Eles progridem de velhos carros
para Fords de segunda-mão, e finalmente Fords novos.
Devemos considerar, então, se seria desejável fazer esses jovens
pensar em Chevrolet. Eu sinceramente acho que estamos em posição
de fazer uma tentativa de sucesso. Existem, porém, vários fatores
que podem nos atrapalhar: 1) lealdade e experiência com Fords; 2)
a indústria de preparação está pronta para os Fords; 3) números:
milhares estão e continuarão a |
trabalhar em Fords de competição; 4) o lançamento do motor Ford V8
de válvulas no cabeçote.
Quando nossa linha de V8 superior em qualidade apareceu
[Cadillac e Oldsmobile], houve poucas tentativas de
desenvolvê-los, e nenhuma com sucesso. A aparição do V8 Chrysler
também encontrou relutância, apesar do sucesso dos Ardun-Fords
condicioná-los a aceitar o Firepower [Hemi]. Este ano é o
primeiro em que desenvolvimentos isolados de Chryslers tiveram
sucesso. Os recordes de Bonneville se dividiram entre Ardun-Fords
e Chryslers.
Como todo mundo, os hot-rodders são atraídos por novidades.
Mas experiências amargas os ensinaram que desenvolvimento é caro e
demora muito tempo, e portanto eles são conservadores ao extremo.
Pela minha experiência, demora cerca de três anos para os
hot-rodders finalmente chegarem a um desenvolvimento de
sucesso de um novo motor. O novo Ford V8 estará neste estágio
entre 1956 e 1957.
O potencial de nosso RPO V8 [Regular Production Option,
opcional normal de produção] é extremamente alto, mas deixar
as coisas seguirem o seu ritmo natural vai nos colocar um ano
atrás — e então poucos tentarão desenvolver os Chevrolets. Uma
maneira de acabar com este problema é a oferta de peças de
preparação prontas já no lançamento, desenvolvidas pela própria
Chevrolet.
Se o uso do motor Chevrolet se tornar fácil, e as primeiras
tentativas tiverem sucesso, o apelo do RPO V8 será mantido; ele
não ganhará o estigma de alto preço, como os da Cadillac e da
Chrysler; e o balanço do pêndulo para o nosso lado pode ser
antecipado. Isto significa o desenvolvimento de uma linha de peças
especiais: comandos, válvulas, molas, coletores, pistões e outros.
E estas peças devem estar disponíveis ao público.
Agora, se estas peças puderem ser oferecidas como RPO no Corvette,
e a existência do Corvette nos dá esta chance, estas peças serão
reconhecidas pelos hot-rodders como as que eles precisam
para preparar seus Chevrolets. E já que não podemos proibir os
hot-rodders de competir com os Chevrolets e o Corvette, vamos
ajudá-los então a fazer um bom trabalho!
Para se sair bem nesta área, as peças RPO não devem se limitar ao
motor, mas devem chegar a componentes de chassis também. O uso de
metais leves e desenvolvimentos na área de freios já estão na
agenda do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento.
Esses pensamentos são oferecidos pelo que são: um homem pensando
alto sobre o assunto."
Z. Arkus Duntov, 16 de dezembro de 1953 |