Quando todos perdem

Com percursos e condições limitados demais, fabricantes
desperdiçam a oportunidade de boa avaliação pela imprensa

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editorNa semana passada o importador Porsche para o Brasil fez-nos um convite irrecusável: dirigir, ainda que brevemente, o novo carro esporte da marca, o cupê Cayman S. O assessor de imprensa — Luiz Alberto Pandini, nosso amigo e ex-colunista — avisou que o carro não poderia se afastar muito da sede da empresa, na Av. Europa, em São Paulo, mas disse que seria possível "dar umas aceleradas" e sentir um pouco do automóvel.

Como o BCWS não recusaria tal oportunidade, foi dirigir o Cayman, na pessoa do colunista e consultor técnico Bob Sharp. A "avaliação", porém, foi um tanto mais limitada do que poderíamos imaginar: poucos quarteirões ao redor da importadora, com tráfego intenso e lombadas. Ao conversarmos mais tarde, Bob ponderou que "seria ofensa aos leitores escrever sobre ter andado nele". Assim, tendo em vista que uma ampla apresentação havia sido publicada em dezembro, quando o carro chegou ao Brasil, decidimos — e informamos ao assessor — que nada publicaríamos sobre a "volta no quarteirão". E pedimos outra oportunidade em lugar apropriado, como um campo de provas, o que Pandini disse não ser possível por enquanto.

A Porsche não foi a única a realizar uma apresentação à imprensa sem as mínimas condições de avaliação. Nestes oito anos de BCWS passamos por várias situações semelhantes, embora a do Cayman tenha potencial para se estabelecer como recorde.

Em abril de 2002 o importador da Maserati levou jornalistas ao autódromo José Carlos Pace, no bairro de Interlagos, em São Paulo, para conhecer os modelos Coupe e Spyder. O percurso? Algo como 800 metros, delimitados com cones, onde quase nada podia ser analisado. E o que dizer da Honda que, ao apresentar o Fit em 2003, só permitiu a direção nas dependências da fábrica de Sumaré, SP?

Em outros tempos a Audi cometia esses erros com freqüência, como no A3/S3, em 2000, no autódromo de Goiânia, GO. Além das condições inadequadas à avaliação de carros de rua, havia tantos jornalistas e tão poucos carros (um S3 e três A3) que o modelo mais potente teve lista VIP, à qual era preciso se inscrever. Imagino que alguns colegas menos atentos podem ter voltado para casa, depois de dirigir só o A3, sem saber que um dos carros ali era bem diferente dos outros... Além disso, podia-se dar uma só volta na pista com o S3. Mas a empresa aprendeu com a falha e tem propiciado melhores condições nos últimos anos.

Numa conversa tempos atrás, Bob contou-me um caso semelhante e curioso, de quando era editor técnico e de testes da revista Autoesporte. Em 1994 a Chrysler do Brasil convidou-o para uma apresentação da linha, inclusive o Dodge Viper, na Flórida, EUA. Foram ao Autódromo de Moroso. O traçado de teste consistia em um percurso de 1,1 km, estreito e travado, também mal dando para usar a segunda marcha. Bob conta que chamou os responsáveis da empresa num canto e lhes disse que não poderia escrever sobre o Viper se fosse para dirigi-lo naquela circunstância. Seguiu-se uma breve reunião e, minutos depois, um dos homens de imprensa da companhia disse a Bob que ficasse por ali quando o grupo voltasse para o hotel, quando poderia usar a pista completa. Desse modo, foi possível sentir o fabuloso Dodge e escrever honestamente a respeito dele.

Voltando a casos brasileiros, vê-se que outras marcas ainda precisam melhorar nesse aspecto. No evento do Toyota Hilux SW4, em outubro passado, o trecho "fora-de-estrada" previsto no roteiro era uma rua de terra de cerca de 200 metros. Escolha infeliz para um modelo com sofisticada tração integral e bons atributos para vencer terrenos difíceis. Em maio, a Volvo havia lançado os novos S40 e V50 em um kartódromo em Aldeia da Serra, SP, onde não se conseguia sequer esticar a segunda marcha. Embora útil para sentir o comportamento em curvas fechadas, teria de ser complementado com um percurso urbano e rodoviário, o que não aconteceu.

Quando comento essa questão com colegas, às vezes escuto reações contrárias. "Evento é só para umas impressões; o verdadeiro teste é depois, na sua cidade", comentam alguns. Concordo com a segunda parte, mas não com a primeira. Apresentação à imprensa pode — e deve — oferecer condições mínimas para se conhecer o veículo, em especial nos tipos de piso e nas faixas de velocidade onde seu público-alvo vai trafegar. Além disso, é preciso considerar que em muitos casos o veículo demora a ser cedido a toda a imprensa para uma avaliação completa — e, em outros, isso jamais acontece para a maior parte dos jornalistas. Não se espera, por exemplo, que a Porsche e a Maserati possam nos emprestar seus modelos por alguns dias, já que sequer têm veículos destinados a esse fim, embora devessem.

Por isso, o evento deve obedecer a alguns requisitos. Percursos em rua, estrada plana e serra são importantes em qualquer caso. Para modelos esportivos, vale a pena recorrer a um campo de provas, como os das fábricas de pneus Pirelli e Goodyear — que se prestam bem a qualquer tipo de carro como complemento. Nos fora-de-estrada, indispensável incluir no programa um trajeto com terra, lama e obstáculos, como algumas assessorias já fizeram muito bem — até em pista preparada no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, caso do BMW X3, severa a ponto de um ou outro colega ter atolado.

Colocar um carro esporte para uma volta no quarteirão ou pista limitada artificialmente, um valente 4x4 em um roteiro só de asfalto ou um sedã de luxo em um kartódromo é brincadeira de mau gosto. Um veículo mal avaliado significa, para o fabricante ou importador, perder a oportunidade de demonstrar seu produto; para o jornalista, jogar tempo fora e ter de se basear em impressões incompletas ao escrever; e para o leitor, ficar sem embasamento para eventualmente se decidir pela compra. Uma falha com que todos perdem.

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Data de publicação: 18/2/06

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