A grama do vizinho

Da surpresa na Argentina à confirmação: o tratamento de
alguns fabricantes aos dois mercados não é o mesmo

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editorComo se sabe, volta e meia a indústria realiza eventos de lançamento no exterior, como ocorreu na semana passada na Argentina com o Peugeot 307 Sedan. E um de meus hábitos nessas oportunidades, até para quebrar a monotonia dos maçantes deslocamentos em ônibus do fabricante anfitrião, é observar os automóveis e o trânsito local como fonte de comparação e de curiosidades.

No evento do 307, passávamos ao lado de um Gol com o estilo do modelo 2006 — a tal "Geração 4" — quando me surpreendi: o interior era o mesmo usado aqui até 2005, na "Geração 3", mais agradável e bem-acabado sob qualquer aspecto. Fiquei com aquilo em mente até confirmar no site da Volkswagen argentina. O Gol deles é mesmo bem melhor que o nosso por dentro, dos bancos mais envolventes (aqui restritos a Parati e Saveiro em versões de topo) ao painel com instrumentos amplos e bem legíveis, passando pelas portas com melhor aspecto e o requinte das maçanetas cromadas. Nada do despojamento franciscano e do miniconta-giros adotados aqui no ano passado.

Não é a primeira vez que isso acontece. Conta o amigo e colunista Bob Sharp que por volta de 1992, quando o Gol nacional era equipado com o motor de 1,6 litro da Ford (o AE, ex-CHT), conversou sobre o carro com um colega argentino em um evento no exterior. Diante da divergência de opiniões sobre o desempenho, esclareceu-se a razão: o jornalista portenho desconhecia o Gol com motor Ford, pois lá o carro nunca deixou de usar o excelente VW AP-1600 — embora a associação dos fabricantes na Autolatina tenha ocorrido em ambos os países. Portanto, vem de longe o hábito da marca de favorecer o consumidor argentino sobre o brasileiro.

O cliente da General Motors não está em melhor situação. Aqui, se quiser um Astra esportivo terá de se contentar com a versão SS, de mesma mecânica das demais. Já na Argentina é oferecido um GSi digno da sigla, com o motor de 2,4 litros, 16 válvulas e 150 cv de nosso Vectra Elite. A Peugeot também vende lá um 206 bem mais "bravo" que o nosso, o GTi, com motor de 2,0 litros e 138 cv. E às vezes a diferença não está na motorização, mas nos equipamentos de conveniência e segurança. Caso do novo Renault Mégane, vendido no Brasil sem teto solar, bolsas infláveis laterais e cortinas infláveis — itens oferecidos na Argentina.

E quanto à Fiat? No lançamento do Palio 1.8R, questionamos por que fazer um esportivo só com cinco portas, se a carroceria de três está em linha para a versão EX. Bastaria combinar os componentes para oferecer o pacote que muitos apreciam. A empresa justificou que não haveria mercado para as duas opções, tendo assim optado pela que venderia mais. Pode ser, mas o 1.8R de três portas está à venda na Argentina... O 206 GTi segue a mesma configuração.

E não deixa de ser curioso que na Argentina ainda exista o antigo Corsa de três portas (apenas com motor 1,6), ao lado do sedã e da nova geração de ambos, enquanto o Celta é vendido sem a gravata-borboleta — como Suzuki Fun. Que razões teria a GM para isolar seu modelo mais despojado, vendendo-o lá com outra marca? Seja qual for o motivo, neste caso a "culpa" da substituição do Corsa pelo Celta no Brasil é do próprio consumidor, já que a GM os ofereceu em paralelo por algum tempo e, como sabemos, a maioria preferiu o mais bonitinho...

A lista do que não temos seria bem maior se fôssemos incluir modelos e versões importados de outras regiões do globo, que em geral chegam antes ao país vizinho e em alguns casos nunca aparecem por aqui. Nesse campo, porém, é razoável a alegação de que trazer os carros ao Brasil é mais trabalhoso e caro para o fabricante, pela necessária adaptação à gasolina com álcool (a deles não tem a mistura) e pela maior extensão territorial a ser coberta pela assistência técnica. Custos, é claro, que teriam de ser repassados a um número pequeno de veículos.

Note também o leitor que não comparo o mercado nacional ao de um país do chamado Primeiro Mundo, em que as diferenças seriam bem mais evidentes — nem mesmo ao México, que se beneficia enormemente do acordo comercial com os Estados Unidos. Falar em Brasil e Argentina é confrontar dois mercados de características muito parecidas e que participam de um mercado comum, o Mercosul. De quebra, o volume total de vendas aqui é cerca de cinco vezes maior e nossa relação de habitantes por veículo (8,5 ante 5) demonstra maior potencial de crescimento que a deles.

Portanto, nada justifica que o mesmo carro seja vendido aqui e lá em configurações diferentes, uma delas superior em conforto, estética ou desempenho. É ótimo que o consumidor argentino seja respeitado com os melhores automóveis que um fabricante pode oferecer em cada faixa de preço. Mas é preciso que a grama seja verde também do lado de cá das fronteiras.

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Data de publicação: 5/8/06

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