Ilegalidade repentina

Resolução do Contran estabelece fiscalização aos
filmes nos vidros e expõe uma frota fora da lei

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editorO Conselho Nacional de Trânsito (Contran) determinou, nesta quarta-feira, novo índice mínimo de transmissão luminosa para os vidros traseiros dos veículos (leia notícia). O órgão veio não ampliar, mas reduzir a transparência exigida para os vidros laterais traseiros e o vidro traseiro, isto é, agora permite que eles fiquem mais escuros. E informou que, desde aquela data, passa a usar o chamado Medidor de Transmitância Luminosa para aferir na prática o cumprimento dos índices.

Para muita gente, pode ter parecido que não faz diferença. Desde que o órgão emitiu resolução autorizando seu uso, em 1998, as películas escurecedoras (ou filmes — vamos deixar de lado o popular "insulfilme", que vem da marca comercial Insulfilm) integraram-se ao cotidiano de milhares, talvez milhões de motoristas. Já é raro encontrar à venda, sobretudo nos grandes centros, um carro sem filme nos vidros. E o item é cada vez mais incluído como "acessório obrigatório" por vendedores e compradores de veículos. Tornou-se tão habitual, se não mais, retirar o carro da concessionária já com os vidros escurecidos quanto com um rádio ou um jogo de tapetes.

Se agora é permitido usar filme mais escuro, quem já tem em seu carro pode ficar tranqüilo, certo? Errado. A parte que muda tudo é a segunda: até então a fiscalização da transparência era feita pela chancela aplicada pelo instalador, mas agora passa a usar um medidor apropriado. E o que muitos — suponho que a esmagadora maioria — não sabem é que estão fora dos limites.

A questão toda, ou quase toda, está nos vidros laterais dianteiros. O índice mínimo de 70%, que não foi alterado, está pouco abaixo do obtido pelos vidros verdes originais (75%). Coloque o filme mais claro que encontrar, e pronto: seu carro já passa da cota. Talvez você concorde em manter os vidros da frente sem filme e aplicá-lo só das colunas centrais para trás. Nesse caso, considerando o vidro original de 75%, o filme deverá ter transmissão luminosa acima de 38%, sob pena de superar o escurecimento permitido (28%, em que vale a multiplicação dos índices). Parece fácil de atender? E se eu disser que o habitual é encontrar à venda filmes com 35% de transmissão ou menos?

É isso mesmo: uma frota incalculável — que inclui, possivelmente, o carro do caro leitor — está irregular e precisa se adequar aos padrões da noite para o dia. E por que tanta gente usou e usa filmes mais escuros, nestes quase 10 anos, sem que jamais tenha havido fiscalização em massa ou esclarecimento público a respeito?

Os motivos
Quando as películas apareceram no Brasil, no fim dos anos 80, sua publicidade destacava dois aspectos: controle da radiação solar, para conforto dos ocupantes e preservação dos revestimentos internos, e ganho em privacidade. Talvez ainda não se pensasse muito — ou se quisesse fazer propaganda — sobre a questão da segurança pessoal, mas os usuários não demoraram a perceber esse atributo. Tornou-se pensamento comum que seria difícil a um assaltante ver e identificar o motorista, se homem ou mulher, só ou acompanhado, atento ou distraído.

Se a dificuldade realmente existe, é difícil dizer. Há sempre o pára-brisa, que a lei e o bom senso mandam deixar sem filme, por onde o meliante poderia tirar a dúvida. O fato, porém, é que a película caiu no gosto popular tendo esse como o argumento mais comum. Mais de uma vez, autoridades policiais vieram a público recomendar o uso do filme, sobretudo em carros dirigidos por mulheres. Para muitos, rodar com vidros transparentes (ao tomar um carro emprestado, por exemplo) passou a dar sensação de insegurança.

Sem falar no primeiro aspecto, o da proteção solar. Mesmo depois que o ar-condicionado se difundiu, é inegável o conforto trazido pelo filme quando há incidência de sol forte sobre os ocupantes pelos vidros laterais. Sem ele, é preciso colocar o ar-condicionado para esfriar o que o sol insiste em aquecer — além de a película filtrar parte dos raios ultravioleta, que causam à pele envelhecimento e até câncer.

Por que, então, não é permitido um filme tão escuro quanto se desejar?

Basicamente pela necessidade de prever um campo visual para o motorista, como medida de segurança no tráfego. Algo que qualquer pessoa responsável reconhece, mas que não leva a um consenso em termos de índice de transparência. Já dirigi carros que deviam ter menos de 15% de transmissão luminosa nas portas dianteiras e não gostei, enquanto outros na faixa de 20% a 30% não me incomodaram. Entre esses 15% e os 70% exigidos pela norma, portanto, há uma ampla faixa na qual pode se encaixar o ponto ideal de muitos motoristas.

Há quem argumente que os vidros traseiros também deveriam manter a transparência para permitir a visão de outros motoristas através do carro, importante em uma fila de tráfego denso. Mas ninguém pensaria em proibir furgões com toda a parte traseira fechada, sem vidros. Onde está a coerência?

Por todo esse quadro foi que o filme se consagrou. Parecia ingênuo o Contran ter deixado com a raposa o controle do galinheiro, isto é, habilitar os próprios instaladores a aplicar a chancela sobre o cumprimento dos índices legais. Talvez os legisladores previssem, na resolução de 1998, que certa tolerância sobre a transparência dos vidros fosse uma medida coerente. Tanto quanto, nos anos 80 e 90, a vista-grossa de policiais rodoviários a quem rodava a 100 ou 110 km/h quando imperava o anacrônico limite de 80.

O que vai acontecer agora? Arrisco dois palpites. Uma possibilidade é que — como sempre acontece com novas normas de trânsito, até mesmo a dos kits de primeiros-socorros — a fiscalização comece para valer, multando e apreendendo, até que a opinião pública se mobilize e faça o processo voltar atrás. Outra é que os medidores de transparência nunca saiam do papel e o brasileiro possa, como nos últimos nove anos, continuar a rodar por trás dos filmes. O que me parece menos provável é que a lei realmente pegue e que, em pouco tempo, estejamos todos de volta com os vidros dianteiros como vieram ao mundo.

Mas é um filme — com perdão pelo trocadilho — que ainda terá longas tramas pela frente.

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Data de publicação: 24/11/07

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