O Conselho Nacional de
Trânsito (Contran) determinou, nesta quarta-feira, novo índice mínimo
de transmissão luminosa para os vidros traseiros dos veículos (leia
notícia). O órgão veio não ampliar, mas reduzir a
transparência exigida para os vidros laterais traseiros e o vidro
traseiro, isto é, agora permite que eles fiquem mais escuros. E
informou que, desde aquela data, passa a usar o chamado Medidor de
Transmitância Luminosa para aferir na prática o cumprimento dos
índices.
Para muita gente, pode ter parecido que não faz diferença. Desde que o
órgão emitiu resolução autorizando seu uso, em 1998, as películas
escurecedoras (ou filmes — vamos deixar de lado o popular "insulfilme",
que vem da marca comercial Insulfilm) integraram-se ao cotidiano de
milhares, talvez milhões de motoristas. Já é raro encontrar à venda,
sobretudo nos grandes centros, um carro sem filme nos vidros. E o item
é cada vez mais incluído como "acessório obrigatório" por vendedores e
compradores de veículos. Tornou-se tão habitual, se não mais, retirar
o carro da concessionária já com os vidros escurecidos quanto com um
rádio ou um jogo de tapetes.
Se agora é permitido usar filme mais escuro, quem já tem em seu carro
pode ficar tranqüilo, certo? Errado. A parte que muda tudo é a
segunda: até então a fiscalização da transparência era feita pela
chancela aplicada pelo instalador, mas agora passa a usar um medidor
apropriado. E o que muitos — suponho que a esmagadora maioria — não
sabem é que estão fora dos limites.
A questão toda, ou quase toda, está nos vidros laterais dianteiros. O
índice mínimo de 70%, que não foi alterado, está pouco abaixo do
obtido pelos vidros verdes originais (75%). Coloque o filme mais claro
que encontrar, e pronto: seu carro já passa da cota. Talvez você
concorde em manter os vidros da frente sem filme e aplicá-lo só das
colunas centrais para trás. Nesse caso, considerando o vidro original
de 75%, o filme deverá ter transmissão luminosa acima de 38%, sob pena
de superar o escurecimento permitido (28%, em que vale a multiplicação
dos índices). Parece fácil de atender? E se eu disser que o habitual é
encontrar à venda filmes com 35% de transmissão ou menos?
É isso mesmo: uma frota incalculável — que inclui, possivelmente, o
carro do caro leitor — está irregular e precisa se adequar aos padrões
da noite para o dia. E por que tanta gente usou e usa filmes mais
escuros, nestes quase 10 anos, sem que jamais tenha havido
fiscalização em massa ou esclarecimento público a respeito?
Os motivos
Quando as películas apareceram no Brasil, no fim dos anos 80, sua
publicidade destacava dois aspectos: controle da radiação solar, para
conforto dos ocupantes e preservação dos revestimentos internos, e
ganho em privacidade. Talvez ainda não se pensasse muito — ou se
quisesse fazer propaganda — sobre a questão da segurança pessoal, mas
os usuários não demoraram a perceber esse atributo. Tornou-se
pensamento comum que seria difícil a um assaltante ver e identificar o
motorista, se homem ou mulher, só ou acompanhado, atento ou distraído.
Se a dificuldade realmente existe, é difícil dizer. Há sempre o
pára-brisa, que a lei e o bom senso mandam deixar sem filme, por onde
o meliante poderia tirar a dúvida. O fato, porém, é que a película
caiu no gosto popular tendo esse como o argumento mais comum. Mais de
uma vez, autoridades policiais vieram a público recomendar o uso do
filme, sobretudo em carros dirigidos por mulheres. Para muitos, rodar
com vidros transparentes (ao tomar um carro emprestado, por exemplo)
passou a dar sensação de insegurança.
Sem falar no primeiro aspecto, o da proteção solar. Mesmo depois que o
ar-condicionado se difundiu, é inegável o conforto trazido pelo filme
quando há incidência de sol forte sobre os ocupantes pelos vidros
laterais. Sem ele, é preciso colocar o ar-condicionado para esfriar o
que o sol insiste em aquecer — além de a película filtrar parte dos
raios ultravioleta, que causam à pele envelhecimento e até câncer.
Por que, então, não é permitido um filme tão escuro quanto se desejar?
Basicamente pela necessidade de prever um campo visual para o
motorista, como medida de segurança no tráfego. Algo que qualquer
pessoa responsável reconhece, mas que não leva a um consenso em termos
de índice de transparência. Já dirigi carros que deviam ter menos de
15% de transmissão luminosa nas portas dianteiras e não gostei,
enquanto outros na faixa de 20% a 30% não me incomodaram. Entre esses
15% e os 70% exigidos pela norma, portanto, há uma ampla faixa na qual
pode se encaixar o ponto ideal de muitos motoristas.
Há quem argumente que os vidros traseiros também deveriam manter a
transparência para permitir a visão de outros motoristas através do
carro, importante em uma fila de tráfego denso. Mas ninguém pensaria
em proibir furgões com toda a parte traseira fechada, sem vidros. Onde
está a coerência?
Por todo esse quadro foi que o filme se consagrou. Parecia ingênuo o
Contran ter deixado com a raposa o controle do galinheiro, isto é,
habilitar os próprios instaladores a aplicar a chancela sobre o
cumprimento dos índices legais. Talvez os legisladores previssem, na
resolução de 1998, que certa tolerância sobre a transparência dos
vidros fosse uma medida coerente. Tanto quanto, nos anos 80 e 90, a
vista-grossa de policiais rodoviários a quem rodava a 100 ou 110 km/h
quando imperava o anacrônico limite de 80.
O que vai acontecer agora? Arrisco dois palpites. Uma possibilidade é
que — como sempre acontece com novas normas de trânsito, até mesmo a
dos kits de primeiros-socorros — a fiscalização comece para valer,
multando e apreendendo, até que a opinião pública se mobilize e faça o
processo voltar atrás. Outra é que os medidores de transparência nunca
saiam do papel e o brasileiro possa, como nos últimos nove anos,
continuar a rodar por trás dos filmes. O que me parece menos provável
é que a lei realmente pegue e que, em pouco tempo, estejamos todos de
volta com os vidros dianteiros como vieram ao mundo.
Mas é um filme — com perdão pelo trocadilho — que ainda terá longas
tramas pela frente. |