Quando a Renault
anunciou o lançamento do Sandero, em setembro, divulgou também que o
novo hatch e o sedã de que ele deriva — o Logan — passariam a
oferecer, como opção intermediária entre os motores de 1,0 e 1,6
litro com 16 válvulas já disponíveis, um 1,6 de oito válvulas. A
primeira impressão de quem lesse a notícia poderia ser de
retrocesso, já que a potência cairia de 112 cv da versão 1,6 16V para
apenas 95 cv (com uso de álcool nos dois casos).
Embora o Sandero ainda não tenha sido cedido para avaliação completa
do Best Cars, estive recentemente com o Logan dotado do novo-velho
motor de oito válvulas, que ressurge sete anos depois de ser
retirado da linha Clio — foi substituído justamente pela versão 16V em
2001. E as impressões confirmaram o que venho dizendo há tempos:
motor bom é o que atende às necessidades em todas as faixas de
operação.
Ainda estavam claras as sensações de dirigir o Logan 1,0 16V para o
comparativo publicado em agosto. Nas baixas rotações que mais usamos no tráfego urbano, ou mesmo ao sair da imobilidade, o motor não
poderia ser mais inadequado ao carro, um sedã relativamente pesado
com 1.025 kg. Era preciso recorrer a altos regimes, acima de 3.500
rpm, para obter razoável agilidade — de fato, dessa rotação em
diante o pequeno 1,0-litro atendia bem à proposta do carro.
Não seria um problema se usar o motor nessa faixa não trouxesse
tanto ruído, além de se ter de "queimar" um pouco de embreagem para
o lançamento a partir do zero com ar-condicionado ligado. E não resta dúvida que o consumo
nessas condições é maior, anulando em boa parte a vantagem de
economia esperada pela baixa
cilindrada. Em uma viagem em rodovia na faixa de 120 km/h, nova
insatisfação com o câmbio muito curto — necessário para compensar a
falta de ânimo em baixa rotação —, que produzia 4.000 rpm em quinta
e fazia o ruído invadir o interior, com a ajuda do escasso
revestimento fonoabsorvente.
Com o Logan 1,6 de oito válvulas, agora avaliado, foi tudo bem diferente. Já ao deixar a
concessionária de São Paulo onde foi retirado, o carro mostrou-se
outro: ágil desde baixa rotação, bem disposto a se inserir no
trânsito nervoso da capital paulista. O ar-condicionado, que antes
representava prejuízo sensível ao desempenho, parecia não fazer
diferença. E, ao não precisar superar a metade do conta-giros em
quase nenhum momento, o carro ficou bem mais silencioso. O mesmo se
notou na estrada, onde a 120 km/h em quinta bastavam 3.400 rpm, sem
que o carro pedisse reduções de marcha em subidas ou uma sucessão de
trocas nas retomadas.
Nada disso é surpresa para quem já passou por essa comparação em
outros modelos, mas salta aos olhos a diferença relativamente
modesta de potência máxima
entre os dois motores: 77 cv no 1,0 16V e 95 cv no 1,6, ambos com
álcool. Como a adição de 18 cv, ou meros 23%, pode fazer tanta diferença?
É quando se precisa ir um pouco além na análise da ficha técnica.
Enquanto o motor menor obtém torque máximo de 10,1 m.kgf a 4.350
rpm, o maior fornece 14,1 m.kgf a 2.850 rpm. Se são 39% mais
torque com 1.500 rpm a menos, fica evidente que o 1,0 ainda está
longe de seus 10,1 m.kgf quando o 1,6 já chegou ao máximo de 14,1.
Para tirar a dúvida, pedi ao consultor Iran Cartaxo para inserir
estes e outros dados em seu simulador de motores. Veja as curvas de
potência e torque obtidas: |
As conclusões
Embora os gráficos falem por si, vale destacar alguns pontos. A
1.000 rpm — regime muito baixo, mas que faz diferença nos pequenos
deslocamentos em tráfego lento — o motor 1,6 oferece 124%
mais
potência e torque que o 1,0 16V. É como se tivesse 2,2 litros de
cilindrada com o mesmo rendimento por litro do 1,0! A 1.500 giros a diferença ainda é
muito expressiva, 68% mais, e a 2.000 rpm a vantagem do 1,6 está em 55%.
Só a 3.300 giros a superioridade do motor maior cai para menos de
40%, descendo então gradualmente até 10% a 6.000 giros, que é o
ponto de potência máxima do 1,0. Já no pico de potência do 1,6 (95
cv a 5.250 rpm) o 1,0 16V está com apenas 72 cv. Como curiosidade,
por ter sido calibrado para privilegiar baixas rotações, o 1,6
"acaba" cedo e a 6.250 rpm tem sua potência (73 cv) superada pelo
1,0, até que o limitador de giros da central eletrônica entra em
ação.
Se a comparação fosse com o
motor 1,6 de 16 válvulas e 112 cv, eliminaria
qualquer risco de ver o 1,0 16V superar sua potência. A razão de
abordarmos o 1,6 de oito válvulas é a relação
custo-benefício: por sua concepção mais simples e menor número de
componentes, a lógica diz que este motor de 95 cv custa menos
para o fabricante que o de 77 cv. E só chega ao mercado a preço maior por
dois motivos: um, a alíquota de Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) mais alta; e outro, o apelo que acrescenta ao
veículo diante do consumidor. Afinal, não é segredo que
o preço de qualquer produto tem relação com quanto o mercado se
dispõe a pagar por ele.
O caso do Logan e do Sandero é só um exemplo entre vários que podem
ser usados, mas a lição que ele traz é ampla: já passou da hora de
haver unificação de IPI entre os motores de até 1,0 litro e os de maior
cilindrada, pois os carros pequenos de hoje não são mais os de 1990,
quando o benefício fiscal foi aplicado pela primeira vez.
O aumento de peso dos automóveis é inevitável, face a novas
exigências
de segurança em impactos, e cada vez mais se tornam comuns itens que
trazem peso e/ou consumo de potência, como direção assistida,
ar-condicionado e cinco portas. Assim, o que valia para os carros
1000 do começo dos anos 90 — despojados de qualquer conforto e com
peso ao redor de 800 kg — já não vale mais. Os pequenos de geração
mais recente, como Corsa, Fiesta, Palio, Fox e os próprios Renaults
citados, ficam ao redor de 1.000 kg e não raro são adquiridos com os
itens de conforto e conveniência acima.
Esses mesmos modelos ou seus similares, quando vendidos no resto do
mundo, usam motores mais adequados. Ou começam em 1,4 a 1,6 litro,
ou têm versões de 1,0 a 1,2 litro com ênfase nas baixas e médias
rotações — sacrifica-se a potência em alta para tornar o desempenho
mais linear. Até o leve Celta já deixou de ser vendido na Argentina
com motor 1,0, substituído pelo 1,4. E o país vizinho tem topografia
bem mais plana que o nosso.
Se extrair quase 80 cv de 1.000 cm³ (com aspiração
natural e sem recorrer a tecnologias caras como
comando de válvulas
variável) fosse a melhor solução, o mundo todo o faria. Difícil
é imaginar que, nesse assunto, apenas o Brasil esteja andando na mão certa de direção. |