É bem conhecida a estória
— que aparentemente não passa de lenda — de que, à época da corrida
pelo espaço entre americanos e russos, os primeiros gastaram uma
fortuna para desenvolver uma caneta que funcionasse naquelas
condições de gravidade, enquanto os soviéticos apenas usaram...
lápis.
Lenda ou não, é uma forma curiosa de mostrar como a solução mais
simples pode ser a melhor, algo que também se aplica aos automóveis.
Longe de mim ser contrário aos avanços da tecnologia, sem os quais
nem a roda teria sido inventada. Mas, à medida que os carros se
tornam mais sofisticados do ponto de vista técnico ou em sua
interface com o motorista, fica a pergunta: até que ponto isso
representa vantagem efetiva para quem dirige?
Há bons exemplos no mercado mundial, a começar pelo "coração" do
automóvel, o motor. O V8 de 6,2 litros da AMG, a "preparadora de
casa" da Mercedes-Benz, pode parecer uma obra-prima da engenharia:
duplo comando, quatro válvulas por cilindro, variadores de
comando e
coletor de admissão. Tudo para
chegar à potência de 525 cv a 6.800 rpm e ao torque máximo de 64,2
m.kgf a 5.200 rpm em sua aplicação mais potente, a do conversível
SL 63 AMG.
Enquanto isso, a General Motors americana propõe um V8 pouco maior
em cilindrada (7,0 litros), mas obtido de um bloco pequeno para os
padrões locais, em seu Chevrolet
Corvette Z06. Como o da Mercedes, é todo de alumínio e por isso
bastante leve para um oito-cilindros. Sem qualquer sistema de
variação e com o tradicional comando no bloco acionando apenas duas
válvulas por cilindro, este V8 rende 512 cv a 6.300 rpm e 65 m.kgf a
4.800 rpm. É de se imaginar o quanto a Mercedes gasta a mais que a
GM, na produção de um motor tão sofisticado, para obter o mesmo
desempenho de uma unidade bem mais simples.
Em menor proporção, o fato se repete no Brasil e com carros mais
mundanos. A Renault recorre a dois comandos e 16 válvulas para
extrair (sempre com álcool), no Logan e no Sandero de 1,6 litro, 112
cv a 5.750 rpm e 15,5 m.kgf a 3.750 rpm. O mesmo faz a Peugeot para
chegar, na linha 206, a 113 cv a 5.600 rpm e 15,5 m.kgf a 4.000 rpm.
Então aparece o Zetec Rocam da Ford, com um só comando e oito
válvulas, dispondo no Focus de 113 cv a 5.500 rpm e 16 m.kgf a 4.250
rpm... Caso típico de simplicidade técnica com resultado equivalente
ao de algo mais complexo e caro.
Outra questão interessante é a que opõe o comando de acelerador a
cabo ao sistema elétrico com controle eletrônico, adotado hoje em
vários modelos desde o segmento dos pequenos. Desde que a Fiat
alardeou as vantagens do segundo sistema, ao lançar o primeiro motor
Fire no Brasil em 2000, passou-se a acreditar que ele traz bem maior
suavidade de operação que o comando tradicional. Mentira: há modelos
com operação a cabo impecável, como o citado Focus, e há carros com
o sistema elétrico que obtêm resposta abrupta, como os primeiros
Clios Hi-Flex, em 2005, depois aperfeiçoados.
Passando ao câmbio, vem à mente a profusão de marchas nos novos
carros, tanto estrangeiros (já são oito na caixa automática da Lexus
e sete na da Mercedes) quanto nacionais (seis no automático do Golf
e no manual do Mégane 2,0-litros). Maior número de marchas pode ser
útil de duas formas: uma, diminuindo o intervalo entre suas
relações, para o motor cair menos de rotação nas trocas ascendentes;
outra, para "abrir" o escalonamento (saiba
mais) e deixar a última marcha bem longa a fim de reduzir
consumo, ruídos e emissões poluentes.
Mas não resta dúvida de que a indústria tem exagerado por impulso
dos departamentos de marketing, que esperam conquistar consumidores
com o argumento de que "mais é melhor". O Mégane é bom exemplo: sua
sexta não é mais longa que a quinta de modelos semelhantes, nem há
vantagem no menor intervalo quando se trata de um motor com boa
potência em baixas rotações como esse. O motorista acaba por fazer
mais trocas de marcha no dia-a-dia sem qualquer benefício. Ah, mas
os amigos ficam admirados quando vêem o diagrama das seis marchas no
pomo da alavanca de câmbio...
Vitória da simplicidade também se vê nas suspensões, mas só em
parte. O conceito McPherson para a dianteira continua a mostrar
ótimos resultados até em marcas de prestígio como Porsche e BMW,
além de ter sido adotado pela Mercedes (que usava o mais elaborado
de braços sobrepostos) no atual Classe C. Por outro lado, e apesar
do bom desempenho em diversos modelos, o eixo traseiro de torção não
consegue mesmo se equivaler a uma boa suspensão independente, caso
do sistema multibraço. Que o diga quem conheceu o Vectra anterior e
passa ao atual, que trocou multibraço por eixo de torção e perdeu
muito em conforto de marcha. Neste campo, o mais sofisticado ainda é
o melhor.
Aos olhos de quem dirige
Se tudo isso pode passar despercebido pelo motorista comum, menos
interessado em mecânica, há também áreas bem visíveis em que o
simples merece preferência. É o caso dos instrumentos do painel:
muitas tentativas de adotar mostradores digitais, como no Corvette
dos anos 80 e até em Monza, Kadett e Omega nacionais, fracassaram
pela dificuldade de leitura. O fato é que um instrumento analógico
se vê e um digital precisa ser lido, o que requer mais tempo e
atenção. No caso do velocímetro analógico, o motorista habituado ao
carro nem precisa desviar os olhos da estrada: basta perceber a
posição do ponteiro pela visão periférica. Uma possível exceção à
regra, pela facilidade de leitura e posição elevada, é o mostrador
digital do novo Civic.
A simplicidade também deve estar nos comandos para que a atenção do
trânsito seja desviada o mínimo possível. Nada pior nesse aspecto
que a maioria dos aparelhos de áudio do mercado de acessórios — e
alguns poucos entre os instalados de fábrica — com seus botões
minúsculos, excesso de funções à mostra e inscrições que quase
exigem lupa para serem lidas. Difícil entender por que as fábricas
desses equipamentos insistem em complicar o que poderia ser simples.
Seria para atrair o público mais jovem, interessado em mostrar que
"isso aqui não é para tio"?
Controles como os de ar-condicionado também podem ser simples ou
complicados. Os da linha Volvo são uma aula de praticidade: grandes
botões, projetados para uso por pessoas com luvas grossas no inverno
nórdico, e funções muito claras, como botão giratório para ajuste de
temperatura e teclas para cada direção desejada do fluxo de ar. Com
tudo isso, o painel destinado a essa função nos modelos suecos não
ocupa mais espaço que os complexos sistemas digitais de outros
carros, que precisam de demorada atenção e até de consulta ao manual
para ser operados. Talvez também exista aqui o desejo de parecer
moderno, futurista, à custa da facilidade de uso.
Resta o caso dos acionamentos automáticos, como os de faróis e
limpador de pára-brisa, convenientes ao passar por vários túneis em
um trajeto, por exemplo. Alguns deles funcionam muito bem, mas há
casos, como o do limpador da linha Fiat, em que o comando automático
raramente funciona como deveria. Ou varre à velocidade máxima para
limpar uma garoa, ou demora a reagir a uma chuva mais forte. A
fábrica até aplicou um ajuste de sensibilidade na alavanca de
comando, para que o motorista possa corrigir a atuação excessiva ou
insuficiente do limpador. No fim das contas, o automático chega a
dar mais trabalho que um sistema manual...
O mais simples pode ser mesmo melhor. |