Quando o simples é o caminho

Sistemas mais complexos e elaborados trazem melhor
resultado? Os automóveis mostram que nem sempre

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editorÉ bem conhecida a estória — que aparentemente não passa de lenda — de que, à época da corrida pelo espaço entre americanos e russos, os primeiros gastaram uma fortuna para desenvolver uma caneta que funcionasse naquelas condições de gravidade, enquanto os soviéticos apenas usaram... lápis.

Lenda ou não, é uma forma curiosa de mostrar como a solução mais simples pode ser a melhor, algo que também se aplica aos automóveis. Longe de mim ser contrário aos avanços da tecnologia, sem os quais nem a roda teria sido inventada. Mas, à medida que os carros se tornam mais sofisticados do ponto de vista técnico ou em sua interface com o motorista, fica a pergunta: até que ponto isso representa vantagem efetiva para quem dirige?

Há bons exemplos no mercado mundial, a começar pelo "coração" do automóvel, o motor. O V8 de 6,2 litros da AMG, a "preparadora de casa" da Mercedes-Benz, pode parecer uma obra-prima da engenharia: duplo comando, quatro válvulas por cilindro, variadores de comando e coletor de admissão. Tudo para chegar à potência de 525 cv a 6.800 rpm e ao torque máximo de 64,2 m.kgf a 5.200 rpm em sua aplicação mais potente, a do conversível SL 63 AMG.

Enquanto isso, a General Motors americana propõe um V8 pouco maior em cilindrada (7,0 litros), mas obtido de um bloco pequeno para os padrões locais, em seu Chevrolet Corvette Z06. Como o da Mercedes, é todo de alumínio e por isso bastante leve para um oito-cilindros. Sem qualquer sistema de variação e com o tradicional comando no bloco acionando apenas duas válvulas por cilindro, este V8 rende 512 cv a 6.300 rpm e 65 m.kgf a 4.800 rpm. É de se imaginar o quanto a Mercedes gasta a mais que a GM, na produção de um motor tão sofisticado, para obter o mesmo desempenho de uma unidade bem mais simples.

Em menor proporção, o fato se repete no Brasil e com carros mais mundanos. A Renault recorre a dois comandos e 16 válvulas para extrair (sempre com álcool), no Logan e no Sandero de 1,6 litro, 112 cv a 5.750 rpm e 15,5 m.kgf a 3.750 rpm. O mesmo faz a Peugeot para chegar, na linha 206, a 113 cv a 5.600 rpm e 15,5 m.kgf a 4.000 rpm. Então aparece o Zetec Rocam da Ford, com um só comando e oito válvulas, dispondo no Focus de 113 cv a 5.500 rpm e 16 m.kgf a 4.250 rpm... Caso típico de simplicidade técnica com resultado equivalente ao de algo mais complexo e caro.

Outra questão interessante é a que opõe o comando de acelerador a cabo ao sistema elétrico com controle eletrônico, adotado hoje em vários modelos desde o segmento dos pequenos. Desde que a Fiat alardeou as vantagens do segundo sistema, ao lançar o primeiro motor Fire no Brasil em 2000, passou-se a acreditar que ele traz bem maior suavidade de operação que o comando tradicional. Mentira: há modelos com operação a cabo impecável, como o citado Focus, e há carros com o sistema elétrico que obtêm resposta abrupta, como os primeiros Clios Hi-Flex, em 2005, depois aperfeiçoados.

Passando ao câmbio, vem à mente a profusão de marchas nos novos carros, tanto estrangeiros (já são oito na caixa automática da Lexus e sete na da Mercedes) quanto nacionais (seis no automático do Golf e no manual do Mégane 2,0-litros). Maior número de marchas pode ser útil de duas formas: uma, diminuindo o intervalo entre suas relações, para o motor cair menos de rotação nas trocas ascendentes; outra, para "abrir" o escalonamento (saiba mais) e deixar a última marcha bem longa a fim de reduzir consumo, ruídos e emissões poluentes.

Mas não resta dúvida de que a indústria tem exagerado por impulso dos departamentos de marketing, que esperam conquistar consumidores com o argumento de que "mais é melhor". O Mégane é bom exemplo: sua sexta não é mais longa que a quinta de modelos semelhantes, nem há vantagem no menor intervalo quando se trata de um motor com boa potência em baixas rotações como esse. O motorista acaba por fazer mais trocas de marcha no dia-a-dia sem qualquer benefício. Ah, mas os amigos ficam admirados quando vêem o diagrama das seis marchas no pomo da alavanca de câmbio...

Vitória da simplicidade também se vê nas suspensões, mas só em parte. O conceito McPherson para a dianteira continua a mostrar ótimos resultados até em marcas de prestígio como Porsche e BMW, além de ter sido adotado pela Mercedes (que usava o mais elaborado de braços sobrepostos) no atual Classe C. Por outro lado, e apesar do bom desempenho em diversos modelos, o eixo traseiro de torção não consegue mesmo se equivaler a uma boa suspensão independente, caso do sistema multibraço. Que o diga quem conheceu o Vectra anterior e passa ao atual, que trocou multibraço por eixo de torção e perdeu muito em conforto de marcha. Neste campo, o mais sofisticado ainda é o melhor.

Aos olhos de quem dirige
Se tudo isso pode passar despercebido pelo motorista comum, menos interessado em mecânica, há também áreas bem visíveis em que o simples merece preferência. É o caso dos instrumentos do painel: muitas tentativas de adotar mostradores digitais, como no Corvette dos anos 80 e até em Monza, Kadett e Omega nacionais, fracassaram pela dificuldade de leitura. O fato é que um instrumento analógico se vê e um digital precisa ser lido, o que requer mais tempo e atenção. No caso do velocímetro analógico, o motorista habituado ao carro nem precisa desviar os olhos da estrada: basta perceber a posição do ponteiro pela visão periférica. Uma possível exceção à regra, pela facilidade de leitura e posição elevada, é o mostrador digital do novo Civic.

A simplicidade também deve estar nos comandos para que a atenção do trânsito seja desviada o mínimo possível. Nada pior nesse aspecto que a maioria dos aparelhos de áudio do mercado de acessórios — e alguns poucos entre os instalados de fábrica — com seus botões minúsculos, excesso de funções à mostra e inscrições que quase exigem lupa para serem lidas. Difícil entender por que as fábricas desses equipamentos insistem em complicar o que poderia ser simples. Seria para atrair o público mais jovem, interessado em mostrar que "isso aqui não é para tio"?

Controles como os de ar-condicionado também podem ser simples ou complicados. Os da linha Volvo são uma aula de praticidade: grandes botões, projetados para uso por pessoas com luvas grossas no inverno nórdico, e funções muito claras, como botão giratório para ajuste de temperatura e teclas para cada direção desejada do fluxo de ar. Com tudo isso, o painel destinado a essa função nos modelos suecos não ocupa mais espaço que os complexos sistemas digitais de outros carros, que precisam de demorada atenção e até de consulta ao manual para ser operados. Talvez também exista aqui o desejo de parecer moderno, futurista, à custa da facilidade de uso.

Resta o caso dos acionamentos automáticos, como os de faróis e limpador de pára-brisa, convenientes ao passar por vários túneis em um trajeto, por exemplo. Alguns deles funcionam muito bem, mas há casos, como o do limpador da linha Fiat, em que o comando automático raramente funciona como deveria. Ou varre à velocidade máxima para limpar uma garoa, ou demora a reagir a uma chuva mais forte. A fábrica até aplicou um ajuste de sensibilidade na alavanca de comando, para que o motorista possa corrigir a atuação excessiva ou insuficiente do limpador. No fim das contas, o automático chega a dar mais trabalho que um sistema manual...

O mais simples pode ser mesmo melhor.

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Data de publicação: 19/4/08

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