Como gato e rato

A caça a segredos da indústria, comum e tradicional na imprensa,
às vezes leva a incidentes como o recente caso da Renault

por Fabrício Samahá

Na terça-feira dia 15, a redação da revista francesa AutoPlus recebeu uma visita inesperada: oficiais de justiça foram buscar um jornalista, computadores e documentos, atrás de indicações sobre a fonte de uma matéria veiculada em abril pela publicação. Movido pela Renault, o processo reacendeu o debate sobre a liberdade de imprensa.

O caso começou quando a AutoPlus divulgou fotos da terceira geração do Mégane, a ser lançada em outubro no Salão de Paris. Sem disfarces e em ambiente de estúdio, com imagens do interior inclusive, o flagra deixou claro ter sido feito dentro da empresa, sendo provável a atuação de um funcionário pelo acesso restrito que sempre existe à área de protótipos. Segundo a Renault, essa participação interna é o que ela pretende descobrir com o acesso aos documentos e computadores da revista.

Laurent Chiapello, editor da AutoPlus, disse à agência Reuters: "Ao ganhar acesso aos computadores de nossos jornalistas, a Renault ganha acesso a todas as nossas fontes. Isso é um verdadeiro problema para nosso modo de trabalhar, com independência dos fabricantes". O Sindicato Nacional dos Jornalistas (SNJ) francês considerou "intolerável que jornalistas sejam tratados como criminosos, quando estão apenas fazendo seu trabalho de informar o público". A Renault defendeu-se alegando que pretendia proteger sua propriedade intelectual: "Isso mata a criatividade, pois mostra nossos modelos aos concorrentes."

Discussão ética
Uma vez que a ação foi feita dentro da lei, não há o que discutir sobre sua legalidade. O que coloco em dúvida é se é aceitável, do ponto de vista ético, um fabricante chegar a esse extremo por causa da divulgação de fotos de um futuro lançamento — o que acontece quase todos os dias, seja qual for a origem das imagens e o meio pelo qual são obtidas, dentro ou fora das instalações dos fabricantes.

Fotografar carros a serem lançados sempre envolveu quebrar esquemas de sigilo, como narrou muitas vezes o jornalista Nehemias Vassão, que cuidou dessa missão na revista Quatro Rodas da década de 1960 à de 1980. Além das buscas por estradas nos quatro cantos do País, de vigílias à beira de campos de provas e da infiltração em "clínicas" (como são chamadas as pesquisas sigilosas com potenciais compradores), em diversas oportunidades Vassão esteve dentro das instalações das fábricas, como provavam fotos que a revista publicava à época. Chegou a ser descoberto e levado a delegacias, mas em todo esse período nunca se noticiou algo parecido com o que a Renault fez agora na França.

Nos últimos anos houve casos semelhantes ao da AutoPlus, de vazamento de fotos supostamente feitas nas dependências do fabricante. Em 2001, meses antes do lançamento da segunda geração nacional do Corsa, surgiram na internet imagens do modelo — de autoria nunca divulgada — em uma área restrita, até mesmo com um protótipo camuflado em xadrez ao fundo. É provável que se tratasse de alguma unidade da General Motors ou do campo de provas de Indaiatuba, SP. Não se sabe se o responsável pelo flagra foi descoberto, mas também não houve qualquer atitude contra os órgãos de imprensa que usaram as fotos.

O próprio Best Cars publicou em 2003, quase um ano antes da apresentação oficial, projeções em computador do Fiesta Sedan obtidas de fonte interna da Ford. Lembro que, tão logo o segredo foi revelado, recebi um telefonema do gerente de imprensa da marca, Célio Galvão, questionando a origem das imagens. É claro que se descoberto o responsável seria punido, pois funcionários — dos fabricantes e de seus fornecedores — assinam termo de confidencialidade sobre os assuntos da empresa. Não sei se a Ford chegou a alguém, mas de nossa parte a fonte se manteve sigilosa, como é direito da imprensa e nosso dever aos que colaboram conosco. Nem por isso fomos alvos de qualquer atitude por parte da empresa.

Fabrício Samahá, editor

Vale observar que nem sempre os fabricantes fazem questão de manter segredo. Às vezes, estando o lançamento próximo ou não, acabam por facilitar a "descoberta" da novidade para ganhar espaço na mídia e criar expectativa no mercado. Afinal, se não há um modelo atual a ser substituído ou se este já está em fim de carreira, pode ser oportuno mostrar aos clientes da concorrência que, em breve, haverá uma nova opção na mesma categoria.

Caso bem recente foi o do Fiat Bravo, fotografado por um leitor este mês em Campos do Jordão, SP. A região central da estância de inverno, lotada em julho, é o último lugar onde um carro disfarçado poderia se manter em segredo... Houve também uma situação curiosa em 2002 na Costa do Sauípe, na Bahia. A semanas de apresentar o Fiesta naquele local turístico, que é próximo da então nova fábrica de Camaçari, a Ford viu a GM escolher o mesmo lugar para o evento do Corsa. A marca do oval tomou então uma atitude inusitada: no momento em que começava a avaliação do concorrente pelos jornalistas, em vias públicas, vários Fiestas sem disfarces passaram a rodar entre eles, sendo alvos fáceis das câmeras. A Ford, de fato, conseguiu dividir espaço com a adversária na imprensa na semana que se seguiu ao evento.

Mais tarde, em 2005, foi a GM quem arquitetou uma situação para obter divulgação fácil. Durante a recepção dos jornalistas no evento do Omega, no campo de provas de Indaiatuba, seus assessores de imprensa de repente gritaram "Olha o novo Vectraaaaa!" e apontaram para um carro, com camuflagem xadrez, que passava pela pista. A manobra, embora discutível pela simulação de que fosse inesperada, trouxe visibilidade ao modelo que chegaria seis meses depois.

Utilidade ao leitor
Quando conversei com amigos — alguns deles jornalistas — sobre o caso da AutoPlus, constatei diferentes reações. Houve quem defendesse a revista, que estaria em seu direito de informar o leitor, e quem a condenasse pela invasão de propriedade ou compra de fotos confidenciais. Fico, sem dúvida, no primeiro grupo e explico por quê.

A caça de segredos, que existe no mundo todo há quase tanto tempo quanto a imprensa automotiva, tem duas finalidades principais: uma, atender à curiosidade do leitor e com isso — ninguém é de ferro — trazer audiência ou vender exemplares da publicação; outra, informar o comprador de automóveis sobre os planos da indústria, que podem afetar sua decisão de compra ou mesmo frustrá-lo em caso de aquisição de modelo que será modificado ou substituído.

É pelo segundo objetivo, de indiscutível utilidade, que esse jogo de gato e rato entre imprensa e indústria se justifica e, a meu ver, deve ser respeitado a todo custo. Cabe ao fabricante cercar-se de cuidados para manter seus planos em segredo, seja pela camuflagem de protótipos, seja pelas precauções com quem entra na empresa e com o que sai de suas dependências. É assim no mundo todo e, apesar de todo esforço em contrário, os futuros lançamentos aparecem com freqüência nas páginas e telas da imprensa.

Uma vez pego o rato, porém, cabe apenas apurar internamente os responsáveis. Atacar o gato, jamais.

No momento em que começava a avaliação do Corsa pelos jornalistas, vários Fiestas sem disfarces passaram a rodar entre eles, sendo alvos fáceis das câmeras.

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Data de publicação: 26/7/08

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