Na terça-feira dia
15, a redação da revista francesa AutoPlus recebeu uma visita
inesperada: oficiais de justiça foram buscar um jornalista,
computadores e documentos, atrás de indicações sobre a fonte de uma
matéria veiculada em abril pela publicação. Movido pela Renault, o
processo reacendeu o debate sobre a liberdade de imprensa.
O caso começou quando a AutoPlus divulgou fotos da terceira
geração do Mégane, a ser lançada em outubro no Salão de Paris. Sem
disfarces e em ambiente de estúdio, com imagens do interior
inclusive, o flagra deixou claro ter sido feito dentro da empresa,
sendo provável a atuação de um funcionário pelo acesso restrito que
sempre existe à área de protótipos. Segundo a Renault, essa
participação interna é o que ela pretende descobrir com o acesso aos
documentos e computadores da revista.
Laurent Chiapello, editor da AutoPlus, disse à agência
Reuters: "Ao ganhar acesso aos computadores de nossos jornalistas, a
Renault ganha acesso a todas as nossas fontes. Isso é um verdadeiro
problema para nosso modo de trabalhar, com independência dos
fabricantes". O Sindicato Nacional dos Jornalistas (SNJ) francês
considerou "intolerável que jornalistas sejam tratados como
criminosos, quando estão apenas fazendo seu trabalho de informar o
público". A Renault defendeu-se alegando que pretendia proteger sua
propriedade intelectual: "Isso mata a criatividade, pois mostra
nossos modelos aos concorrentes."
Discussão ética
Uma vez que a ação foi feita dentro da lei, não há o que
discutir sobre sua legalidade. O que coloco em dúvida é se é
aceitável, do ponto de vista ético, um fabricante chegar a esse
extremo por causa da divulgação de fotos de um futuro lançamento — o
que acontece quase todos os dias, seja qual for a origem das imagens
e o meio pelo qual são obtidas, dentro ou fora das instalações dos
fabricantes.
Fotografar carros a serem lançados sempre envolveu quebrar esquemas
de sigilo, como narrou muitas vezes o jornalista Nehemias Vassão,
que cuidou dessa missão na revista Quatro Rodas da década de
1960 à de 1980. Além das buscas por estradas nos quatro cantos do
País, de vigílias à beira de campos de provas e da infiltração em
"clínicas" (como são chamadas as pesquisas sigilosas com potenciais
compradores), em diversas oportunidades Vassão esteve dentro das
instalações das fábricas, como provavam fotos que a revista
publicava à época. Chegou a ser descoberto e levado a delegacias,
mas em todo esse período nunca se noticiou algo parecido com o que a
Renault fez agora na França.
Nos últimos anos houve casos semelhantes ao da AutoPlus, de
vazamento de fotos supostamente feitas nas dependências do
fabricante. Em 2001, meses antes do lançamento da segunda geração
nacional do Corsa, surgiram na
internet imagens do modelo — de autoria nunca divulgada — em uma
área restrita, até mesmo com um protótipo camuflado em xadrez ao
fundo. É provável que se tratasse de alguma unidade da General
Motors ou do campo de provas de Indaiatuba, SP. Não se sabe se o
responsável pelo flagra foi descoberto, mas também não houve
qualquer atitude contra os órgãos de imprensa que usaram as fotos.
O próprio Best Cars publicou em 2003, quase um ano antes da
apresentação oficial, projeções em computador do
Fiesta Sedan obtidas de fonte
interna da Ford. Lembro que, tão logo o segredo foi revelado, recebi
um telefonema do gerente de imprensa da marca, Célio Galvão,
questionando a origem das imagens. É claro que se descoberto o
responsável seria punido, pois funcionários — dos fabricantes e de
seus fornecedores — assinam termo de confidencialidade sobre os
assuntos da empresa. Não sei se a Ford chegou a alguém, mas de nossa
parte a fonte se manteve sigilosa, como é direito da imprensa e
nosso dever aos que colaboram conosco. Nem por isso fomos alvos de
qualquer atitude por parte da empresa. |
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Vale observar que nem sempre os fabricantes fazem questão de manter
segredo. Às vezes, estando o lançamento próximo ou não, acabam por
facilitar a "descoberta" da novidade para ganhar espaço na mídia e
criar expectativa no mercado. Afinal, se não há um modelo atual a
ser substituído ou se este já está em fim de carreira, pode ser
oportuno mostrar aos clientes da concorrência que, em breve, haverá
uma nova opção na mesma categoria.
Caso bem recente foi o do Fiat Bravo,
fotografado por um leitor este mês em Campos do Jordão, SP. A região
central da estância de inverno, lotada em julho, é o último lugar
onde um carro disfarçado poderia se manter em segredo... Houve
também uma situação curiosa em 2002 na Costa do Sauípe, na Bahia. A
semanas de apresentar o Fiesta
naquele local turístico, que é próximo da então nova fábrica de
Camaçari, a Ford viu a GM escolher o mesmo lugar para o evento do
Corsa. A marca do oval tomou então uma atitude inusitada: no momento
em que começava a avaliação do concorrente pelos jornalistas, em
vias públicas, vários Fiestas sem disfarces passaram a rodar entre
eles, sendo alvos fáceis das câmeras. A Ford, de fato, conseguiu
dividir espaço com a adversária na imprensa na semana que se seguiu
ao evento.
Mais tarde, em 2005, foi a GM quem arquitetou uma situação para
obter divulgação fácil. Durante a recepção dos jornalistas no evento
do Omega, no campo de provas de Indaiatuba, seus assessores de
imprensa de repente gritaram "Olha o
novo Vectraaaaa!" e apontaram
para um carro, com camuflagem xadrez, que passava pela pista. A
manobra, embora discutível pela simulação de que fosse inesperada,
trouxe visibilidade ao modelo que chegaria seis meses depois.
Utilidade ao leitor
Quando conversei com amigos — alguns deles jornalistas — sobre o
caso da AutoPlus, constatei diferentes reações. Houve quem
defendesse a revista, que estaria em seu direito de informar o
leitor, e quem a condenasse pela invasão de propriedade ou compra de
fotos confidenciais. Fico, sem dúvida, no primeiro grupo e explico
por quê.
A caça de segredos, que existe no mundo todo há quase tanto tempo
quanto a imprensa automotiva, tem duas finalidades principais: uma,
atender à curiosidade do leitor e com isso — ninguém é de ferro —
trazer audiência ou vender exemplares da publicação; outra, informar
o comprador de automóveis sobre os planos da indústria, que podem
afetar sua decisão de compra ou mesmo frustrá-lo em caso de
aquisição de modelo que será modificado ou substituído.
É pelo segundo objetivo, de indiscutível utilidade, que esse jogo de
gato e rato entre imprensa e indústria se justifica e, a meu ver,
deve ser respeitado a todo custo. Cabe ao fabricante cercar-se de
cuidados para manter seus planos em segredo, seja pela camuflagem de
protótipos, seja pelas precauções com quem entra na empresa e com o
que sai de suas dependências. É assim no mundo todo e, apesar de
todo esforço em contrário, os futuros lançamentos aparecem com
freqüência nas páginas e telas da imprensa.
Uma vez pego o rato, porém, cabe apenas apurar internamente os
responsáveis. Atacar o gato, jamais. |
No
momento em que começava a avaliação do Corsa pelos jornalistas,
vários Fiestas sem disfarces passaram a rodar entre eles, sendo
alvos fáceis das câmeras. |