O
desenho da carroceria de um automóvel, para muitos, pode parecer
atender a um único propósito: ser bonito, atraente aos olhos. De
fato, um carro que agrade à vista sai à frente na missão de
conquistar compradores. No entanto, como não se compra um carro
apenas para deixar exposto na sala, há vários outros aspectos que os
projetistas devem observar. E tenho notado que, em alguns desses
aspectos, nem sempre eles chegam a bom resultado.
Até a década de 1980 os desenhos dos carros comuns, esses que a
maioria de nós pode comprar, eram sobretudo funcionais, com linhas
retas formando os compartimentos de motor, ocupantes e, quando fosse
o caso, bagagem. Há projetos daquele período que ainda se mostram
muito inteligentes em quesitos como aproveitamento de espaço,
facilidade de acesso e visibilidade — o Uno, lançado na Europa em
1983, é um dos melhores exemplos. De lá para cá, porém, algumas
coisas caminharam em um sentido que não beneficiou o motorista e os
passageiros.
A busca por melhor aerodinâmica, ou eficiência com que o carro
"fura" o ar à sua frente, foi responsável por parte das mudanças.
Com ela em vista, os vidros ficaram mais curvos e inclinados, as
linhas foram arredondadas, o capô tem sido rebaixado, e a tampa do
portamalas dos sedãs, elevada. Até certo ponto, o
Cx foi reduzido — com benefícios ao
desempenho, economia de combustível e nível de ruído — e os carros
ganharam também em estilo. O Ford Sierra
de 1982 e o Kadett de 1984
(no Brasil em 1989) foram bons exemplos dessa obsessão por menor
resistência ao ar. Seus desenhos foram tão avançados que eles
parecem contemporâneos a muitos modelos dos anos 90.
A ênfase na aerodinâmica, porém, levou a desvantagens em termos
práticos. Vidros mais inclinados admitem mais luz solar para o
interior, que precisa ser refrigerado de forma mais eficiente. Se os
vidros aumentam de tamanho, como costuma acontecer ao parabrisa
quando sua inclinação cresce (não bastaria montar o mesmo vidro mais
para horizontal, pois o campo visual seria reduzido), há também
aumento de peso, e peso concentrado em uma região alta do veículo,
com reflexo no centro de gravidade.
Um portamalas mais alto prejudica a visibilidade traseira, o que
chegou a ponto crítico em alguns sedãs da década passada, caso do
Tempra, e permanece em modelos atuais como o Fusion.
Com o passar do tempo, os fabricantes perceberam que aerodinâmica
não ajudava tanto a vender e reduziram sua preocupação com ela — à
exceção dos que fazem carros de alto desempenho, como as marcas
alemãs de prestígio, pois acima de 200 km/h as coisas se tornam um
tanto mais complicadas. De forma geral, os automóveis pequenos e
médios de hoje não têm melhor Cx que os similares de 10 ou 15 anos
atrás. Mesmo assim, já nos anos 2000, outras tendências de desenho
se consagraram — e sem vantagem prática a quem dirige. |
|
Visibilidade
desastrosa
A
construção típica das minivans, com teto elevado e parabrisa mais à
frente que nos carros comuns, passou a influenciar o estilo de
outros automóveis. Com o vidro mais avançado, as colunas dianteiras
também precisaram se mover à frente. Em projetos mais recentes elas
interferem bem mais no campo visual do motorista que em modelos mais
antigos, fator que chega a trazer riscos em situações de tráfego
urbano.
Em alguns casos, as colunas ao lado do parabrisa são tão avançadas
que não podem servir como moldura para as portas. Coloca-se então
uma segunda coluna mais atrás com uma janela triangular entre elas.
O resultado costuma ser desastroso para a visibilidade — que o diga
quem já dirigiu Meriva, Idea ou Xsara Picasso. Nos últimos projetos
de formato monovolume, como o novo Fit e a C4 Picasso, nota-se
empenho dos fabricantes em amenizar o problema por meio de colunas
mais estreitas. Difícil de entender é por que automóveis com teto em
altura normal seguiram o mesmo caminho de colunas avançadas. Seria
apenas pelo aspecto futurista do parabrisa amplo e inclinado?
E não só as colunas dianteiras têm incomodado. Embora não sejam
novidade — o Golf já as usava em 1974 —, colunas traseiras espessas
têm se tornado mais comuns pelo aspecto de solidez que transmitem.
Até os anos 90 era comum haver uma pequena janela atrás das portas
traseiras em sedãs e hatches. Eliminado esse recurso em muitos
modelos, criaram-se pontos cegos. |
Difícil de entender é por que automóveis com teto em altura normal
seguiram o mesmo caminho de colunas avançadas das minivans. Seria
apenas pelo aspecto futurista do parabrisa amplo e inclinado? |
Assim como o vidro dianteiro, o traseiro tem ficado cada vez mais
perto da horizontal em sedãs — o famoso estilo de cupê tão apreciado
pelo ar esportivo, informal. Como a parte superior do vidro não pode
ficar muito à frente, sob risco de deixar os passageiros debaixo de
sol intenso ou comprometer seu espaço para cabeça, a solução tem
sido trazer para trás a base do vidro, que então diminui o
comprimento da tampa do portamalas (para entender, compare nas fotos o Prisma
e o Classic, ambos baseados na mesma plataforma). Fica mais bonito? Certamente.
Só que está cada vez mais difícil o acesso ao fundo desse
compartimento em sedãs.
Em modelos hatch, a colocação e retirada de
bagagens tem sido dificultada por outro fator: base do vão de acesso
cada vez mais alta (caso do Citroën C3 e do novo Gol), em parte por
influência do estilo, em parte pela busca de rigidez estrutural, que
é prejudicada por aberturas maiores na carroceria.
Por fim, nos últimos projetos têm subido a linha de base das janelas
a um ponto exagerado. Quem conheceu os Hondas Civic e Accord do
começo dos anos 90, com sua base de parabrisa bastante baixa, terá
claustrofobia se entrar em um Linea: a sensação é de que o
painel cresceu demais para cima. No VW Jetta chega a haver uma
grossa borda de acabamento abaixo do vidro, ligando-o ao painel. Um fator que pode ter levado a isso é a legislação
europeia de
proteção a pedestres em atropelamentos, que tende a exigir capô mais
alto e maior vão livre entre ele e o motor.
Mas o problema não se limita à frente. Nos novos Gol e Corolla, entre
outros, as janelas laterais têm perfil baixo e sobem muito na parte traseira,
a ponto de causar uma sensação estranha a quem viaja atrás. O objetivo talvez seja
ganhar resistência em impactos laterais, mas desconfio que seja (de
novo!) questão de obter aparência robusta. Se continuarmos nesse
caminho, em um futuro breve os carros vão parecer caminhões de
transporte de valores.
Desenho de carros deve, sem dúvida, seguir formas que agradem aos
olhos. Mas a forma deve sempre estar de acordo com a função, nunca
contra ela. |
|