Nesta última semana, um tema motivou alguns leitores a trocar uma
série de mensagens eletrônicas com o Best Cars: o Agile, novo
carro da GM. O principal assunto era a discussão sobre a plataforma
adotada pelo modelo, se seria mesmo a do Celta como o site afirmou e
o que isso representaria. Decidi então abordar a questão neste
editorial.
Antes de mais nada, é preciso definir o que é uma plataforma. Em
outros tempos havia um chassi, uma estrutura metálica sobre a qual a
carroceria era parafusada, como ainda acontece em picapes médios e
pesados. Quando se vê um Fusca sem carroceria, o que resta é
justamente um chassi do tipo plataforma, que então pode ser
"vestido" com a carroceria desejada. Assim nasceram bugues, jipes,
esportivos e toda sorte de derivados do Volkswagen, aqui e no resto
do mundo, tanto pelas mãos da própria fábrica — caso do Karmann Ghia
— quanto por empresas independentes.
Naquele tempo era fácil ver e definir a plataforma; hoje não mais.
Com a consagração da estrutura monobloco,
em que o chassi separado da carroceria foi praticamente extinto dos
automóveis, o conceito precisou evoluir. O que se concebe hoje — às
vezes chamando de arquitetura — é um conjunto que de forma geral
compreende os estampos de assoalho, as medidas básicas como
distância entre eixos e bitolas, a posição de motor e câmbio e o
tipo e disposição das suspensões.
Mais uma vez, a liberdade vem dificultar a formulação do conceito. É
que se pode ter a mesma plataforma com amplas variações em um ou
mais desses parâmetros. Como exemplos, o novo Saveiro mede 28,5
centímetros a mais que o Gol entre eixos, embora usem a mesma
plataforma; a Palio Weekend tem entre-eixos pouco maior e suspensão
traseira independente por braço arrastado, bem diferente do eixo de
torção do Palio hatch e do Siena, mas a plataforma permanece comum;
no Vectra e no C4 o entre-eixos varia do hatch para o sedã; e há
casos de um mesmo modelo receber motores em posição longitudinal e
transversal, como os antigos Renault 21 e Alfa Romeo 145/146. Eu
avisei que não era fácil!
Variações à parte, por que um fabricante — ou um grupo deles — usa a
mesma plataforma em diferentes modelos? Fácil compreender. Sendo uma
parte estrutural, mecânica, ela tem um desenvolvimento extenso e
oneroso para que possa atender a todas as demandas, seja de
resistência ao uso, segurança em colisões, conforto ao rodar ou
comportamento dinâmico, sem falar na pressão por menor custo (quem
pode fugir dela hoje na indústria?). Se após todo esse
desenvolvimento for possível aplicar diferentes carrocerias sobre a
mesma plataforma, ao mesmo tempo ou em sucessivas gerações, haverá
importante redução de custos, até mesmo pela economia de escala de
fabricar os mesmos componentes em quantidade bem maior.
E é mesmo convidativo ao fabricante "vesti-la" com várias roupas,
pois aos olhos do consumidor — mesmo aquele exigente e que dirige o
carro antes de comprar — o aproveitamento pode passar despercebido.
Se não lhe contassem, você imaginaria que o Audi TT original e o VW
New Beetle compartilham a plataforma do Golf de 1997? Ou que o
Fiesta a cede ao EcoSport, o Corsa à Meriva, o Fusion ao Edge, o
atual Golf alemão ao Passat? Ou ainda — um dos casos mais extremos —
que um carro esporte como o Nissan 350Z e um grande utilitário como
o Infiniti FX usam a mesma arquitetura?
Claro que o compartilhamento não se limita à linha de um fabricante:
há uma infinidade de associações para reduzir custos dessa forma,
seja entre marcas independentes, seja por aquelas da mesma
corporação. Porsche Cayenne, Volkswagen Touareg e Audi Q7 têm a
mesma plataforma, ainda que com diferenças dimensionais. A base do
atual Ford Mondeo é a mesma dos Volvos S80/V70 e XC60 e do Land
Rover Freelander, além das minivans Galaxy e S-Max da própria Ford.
A plataforma do Holden Commodore australiano — nosso Omega —
originou a do novo Camaro; a do Corvette serve ao conversível XLR da
Cadillac. Peugeot e Citroën as compartilham há muito tempo, como nas
duplas 306/Xsara e 307/C4. Nos Estados Unidos, a tendência vem de
muitas décadas e passa por exemplos como Oldsmobile Toronado, Buick
Riviera e Cadillac Eldorado, lançados nos anos 60. |
|
Os efeitos
Como se percebe, é virtualmente impossível perceber a semelhança
de plataforma pela parte externa do carro e, em muitos casos, também
pelo interior — embora as posições de pedais, volante, alavanca de
câmbio e comandos secundários possam servir de pista, se o
fabricante não as tiver modificado por algum motivo. Comparar
dimensões também não resolve, pela ampla flexibilidade existente
hoje. Tampouco se ater a motores, já que é comum uma unidade estar
disponível em diferentes linhas da empresa — por exemplo, o mesmo
1,6-litro vai do Ka ao Focus, na Ford, e a família Fire equipa do
Mille ao Linea T-Jet na Fiat.
No entanto, a plataforma influi bastante nas sensações ao dirigir.
Por mais que se possam obter diferentes resultados pelo trabalho em
suspensões, altura de rodagem, medida de pneus e as diversas
calibrações, uma boa plataforma tende a dar bons resultados com
qualquer carroceria, enquanto os problemas de uma plataforma mal
projetada ou de concepção ultrapassada costumam ser carregados pelos
novos modelos que dela se originam. Por isso, causou boa expectativa
quando se viu a VW usar a arquitetura do Polo no novo Gol ou a
Renault tomar a do atual Clio francês como base para desenvolver a
de Logan e Sandero. Por outro lado, o jeito de andar do atual Vectra
— muito duro, ao contrário do antecessor — já era esperado pelo uso
da plataforma do antigo Astra.
E voltamos à questão do Agile. Desde que nossas fontes falaram do
projeto Viva pela primeira vez, ele foi explicado como um "anti-Fox"
com base na plataforma 4200, a do Celta, lançada aqui em 1994 pelo
Corsa. Uma dessas fontes até apelidou de "Celtana" o futuro picape
da linha, em referência à combinação da arquitetura do Celta a um
parentesco de estilo com o Montana, que compartilha com o atual
Corsa a mais moderna arquitetura 4300.
Nos últimos meses, em meio à grande veiculação de informações na
imprensa, a maior revista do setor endossou a informação: era mesmo
a 4200 que, talvez num último sopro, daria origem ao carro já
chamado de Agile. Para nossa decepção, a plataforma que trouxe ao
atual Corsa seus bons atributos de rodagem seria jogada no lixo em
favor de uma sobrevida a sua antecessora — que nem mesmo tinha
subchassi dianteiro, elemento tão
útil na absorção de irregularidades. O departamento de contabilidade
havia vencido a disputa com o de engenharia.
De fato, o Agile veio ao mundo sem subchassi, recurso que fez tão
bem a outros carros (como o Palio em relação ao Uno, o Fiesta de
1996 em comparação ao antigo importado e, claro, o Corsa atual
diante do primeiro ou do Celta). Alguns órgãos de imprensa
endossaram a afirmação da GM de que se trata de uma "nova
plataforma" — até mesmo a revista que havia informado o contrário —
e, como nota curiosa, o fabricante se saiu com a desculpa de que o
subchassi teria atrapalhado a calibração de chassi, ou seja, de que
o carro ficou melhor sem o item do que ficaria com ele. Como o Agile
está pronto e não há como ter acesso a esse desenvolvimento, só se
pode acreditar ou não. Caso se acredite, resta levar a "solução
mágica" às melhores engenharias de chassi mundo afora, como a da
BMW, que costuma usar subchassi também na traseira.
Seria o Agile um carro ruim só por esse motivo? Certamente que não.
O projeto da Kombi tem 60 anos — ainda que tenha havido importante
evolução na suspensão traseira há "pouco tempo", 1975 no caso da
versão brasileira — e ela atende bem a seu propósito. O do Mille
passa de 25 anos e o carro ainda é elogiado pela adequação ao que se
dispõe a fazer. No entanto, ninguém lançaria hoje uma nova
carroceria para a Kombi ou o Mille com outro nome e a mesma velha
plataforma. E, mesmo que o fizesse, seria fácil perceber suas
características por baixo dos panos que estão à vista. |
Uma boa
plataforma tende a dar bons resultados com qualquer carroceria,
enquanto os problemas de uma plataforma mal projetada ou
ultrapassada costumam ser carregados pelos novos modelos que dela se
originam. |