Um
dos temas mais polêmicos do mundo automobilístico em 2009 pode
ganhar uma nova edição. Ray LaHood, secretário de Transportes do
governo dos Estados Unidos, propõe que seja relançado este ano o
programa de troca de carros velhos por novos, conhecido como Cash
for Clunkers (dinheiro por tranqueiras, latas velhas ou outra
denominação qualquer para veículos velhos e em mau estado), que
vigorou entre julho e agosto no país.
Depois que as vendas de automóveis despencaram em razão da crise
econômica iniciada em 2008, o governo norte-americano passou a
buscar alternativas para impulsionar o mercado. Uma saída proposta
por LaHood foi o Car Allowance Rebate System (CARS), sistema de
desconto que dava um crédito de US$ 3.500 ou US$ 4.500 ao comprador
de um carro novo em troca de seu veículo velho. Havia condições para
participar do programa. O carro dado em troca deveria ter menos de
25 anos de produção, ser anterior ao ano-modelo 2002, estar em
condições de rodar e com licenciamento em dia.
O novo veículo adquirido não poderia custar mais de US$ 45 mil — não
é pouco, já que um BMW 335i sai a US$ 40.600 por lá — e, caso fosse
um carro de passeio e não um utilitário, deveria fazer mais de 22
milhas por galão (9,3 km/l) na combinação de ciclos urbano e
rodoviário da EPA, agência de proteção ambiental do governo. Como
referência, um Ford Fusion 2,5-litros consegue média de 25 mpg, mas
o V6 3,0 vai a 21 e por isso não pode participar. Para acentuar o
caráter ecológico do plano, a "tranqueira" deveria ter consumo
combinado pior que 18 mpg (7,6 km/l), sempre considerando a
informação da EPA de quando o carro era novo. O crédito mais alto,
US$ 4.500, valia apenas para trocas em que a melhora de consumo
entre o carro velho e o adquirido fosse de 10 mpg ou mais, no caso
de automóveis, e de 5 mpg ou mais para utilitários.
O programa previa ainda o destino das "latas velhas". Para evitar
que fossem vendidos novamente, mesmo que em outros países (já que
estariam registrados nos EUA como participantes do sistema), os
carros seguiram para estações de serviço credenciadas e tiveram os
motores inutilizados. Após a substituição do óleo lubrificante por
silicato de sódio, que quando aquecido ganha a consistência de
vidro, o motor era mantido em aceleração média até que fundisse e
deixasse de funcionar para sempre. Depois disso, peças que não
fossem de motor e transmissão podiam ser vendidas em desmanches até
que o restante do veículo seguisse para sucata ou reciclagem. |
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Questões no ar
O governo norte-americano considerou o programa um sucesso. O
primeiro US$ 1 bilhão destinado aos descontos, que deveria durar até
outubro, esgotou-se em apenas uma semana, levando a administração a
pedir ao Congresso a liberação de mais US$ 2 bilhões. Comprometido o
novo total em um mês, 690 mil compras de carros novos se
concretizaram. A redução média de consumo — e em consequência das
emissões de gás carbônico, CO2 — também foi comemorada. A média dos
carros recolhidos era de 15,8 mpg e a dos modelos comprados foi de
24,9 mpg, um aumento de 58% em eficiência.
De fato, a maior parte dos veículos condenados pelo sistema era de
utilitários esporte e picapes, com a lista encabeçada pelo Ford
Explorer, seguido por Ford F-150, Jeep Grand Cherokee,
Dodge Caravan/Grand Caravan (minivan), Jeep Cherokee, Chevrolet
Blazer e Chevrolet C-1500 (picape). O carro mais adquirido por meio
do plano foi o Toyota Corolla, seguido de Honda Civic, Toyota Camry,
Ford Focus, Hyundai Elantra e Nissan Versa (nosso Tiida). Só em
décimo lugar surge um utilitário, mesmo assim compacto, o Ford
Escape.
Mas algumas questões ficaram no ar.
Primeira: apesar do crescimento de vendas do mercado como um todo
durante a vigência do plano, os fabricantes norte-americanos não
foram os mais beneficiados por ele. Um estudo da Universidade de
Michigan apontou que, enquanto General Motors, Ford e Chrysler
produziram 85% dos carros entregues em troca, foram responsáveis por
apenas 39% dos novos veículos adquiridos. Já as marcas japonesas
Toyota, Honda e Nissan, que representavam só 8% das "tranqueiras",
participaram de 41% das vendas efetuadas. Além disso, parece natural
que um programa como esse faça antecipar a compra de muitos que já
pretendiam adquirir um novo carro, de modo que ao fim do estímulo as
vendas tendem a ser mais baixas do que na ausência do plano.
Segunda: sob o aspecto ambiental, tão alardeado pelo governo, é
difícil justificar que carros ainda em boas condições de uso sejam
inutilizados e condenados ao sucateamento. Repare no contra-senso:
abrevia-se a vida útil de um bem durável, que consumiu recursos para
ser fabricado, apenas para que um novo — produzido com mais uso
desses recursos — seja colocado na garagem que ele ocupava. Seria
mais razoável se apenas "latas velhas" tivessem esse fim, mas US$
4.500 compram bons carros nos EUA, como modelos médios e até de luxo
ao redor do modelo 2000. Por esse ângulo, talvez o governo fizesse
uso mais nobre se criasse um sistema de destinação desses carros a
outros países.
Declan McCullagh, da Duke University, considera que a fabricação e o
transporte de um carro emitem de três a 12 toneladas de CO2 até que
ele chegue às mãos do comprador. Assim, com a redução de emissão
pelos veículos trocados dentro do programa, o novo carro deveria ser
usado por cinco anos e meio, em média, ou até nove anos no caso de
utilitários para que aquela emissão se anulasse. E, pensando em
maiores proporções, a substituição de 200, 400 ou mesmo 700 mil
carros por outros com menores emissões pouco representa em uma frota
como a norte-americana, de mais de 250 milhões de veículos.
Terceira: os US$ 3 bilhões gastos no programa têm de vir de algum
lugar — naturalmente, do bolso do contribuinte norte-americano. Faz
sentido subsidiar a troca de carros velhos por novos com o dinheiro
público? E, de acordo com estudo do site Edmunds a partir do ritmo
do mercado, apenas 125 mil das 690 mil compras não seriam
concretizadas sem o incentivo governamental. Assim, à média de US$ 4
mil de desconto por veículo, cada uma dessas 125 mil unidades teria
custado aos cofres públicos cerca de US$ 24 mil. |
É difícil
justificar que carros ainda em boas condições de uso sejam
inutilizados. Abrevia-se a vida útil de um bem durável apenas para
que um novo seja colocado na garagem que ele ocupava. |