Como 50 anos atrás

Depois de períodos de prosperidade e de recessão, o mercado nacional
volta a receber "novidades" que já saíram de linha em outros países

por Fabrício Samahá

No começo de nossa indústria automobilística, na década de 1950, alguns antigos projetos de países desenvolvidos foram trazidos para fabricação local, não raro com a importação do próprio ferramental que fazia chassis, carrocerias e mecânicas — caso do Aero-Willys, lançado aqui em 1960 e que já não existia mais nos Estados Unidos desde 1955. Contudo, eram exceções à regra: mesmo em um estágio tão primitivo de nossos fabricantes de automóveis e de autopeças, a maioria dos lançamentos tinha entre dois e três anos de mercado internacional, como acontecia como a linha DKW-Vemag (tanto a perua Universal de 1956 quanto as versões atualizadas de 1958), o Simca Chambord de 1958, o Willys Dauphine do ano seguinte e o FNM 2000 "JK" de 1960.

Entre os anos 60 e 70, nossa defasagem aumentou em alguns casos, com modelos que paravam no tempo e deixavam de acompanhar a evolução do similar estrangeiro — casos da Kombi, do Toyota Bandeirante e mesmo do Fusca. Entre os lançamentos, alguns haviam levado mais tempo para chegar (foram quatro anos para o Ford Maverick e o Dodge 1800), mas outros nos colocavam em sintonia com os países de vanguarda: o VW Passat levou só um ano desde a estreia europeia e o Chevrolet Chevette apareceu aqui seis meses antes que o Opel Kadett alemão assumisse o mesmo formato. Em vários outros casos a habitual defasagem de dois a três anos se manteve, como nos de Ford Galaxie, Chevrolet Opala (Opel Rekord) e Dodge Dart. É verdade que o Fiat 147 chegou cinco anos após a apresentação do 127 na Itália, mas era um novo fabricante, que trouxe seu carro mais atual naquela categoria.

A primeira metade da década de 1980 foi de modernidade para nossa indústria: eram os tempos do carro mundial, como se chamavam os projetos lançados quase em simultâneo em diversos mercados com muitos componentes em comum, parte deles produzida num mesmo ponto para abastecer as várias unidades de fabricação (como exemplo, os motores nacionais do Monza eram exportados para equipar seus similares em outros países). Ganhamos nessa época Uno e o próprio Monza com apenas um ano de mercado europeu, Santana com dois e Escort com ainda aceitáveis três anos, embora já chamasse atenção a longevidade exagerada de velhos projetos como Opala, Chevette, Fusca e, claro, Kombi — substituídos no mundo desenvolvido ainda na década anterior.

Então vieram a crise, uma sucessão de pacotes na economia e um longo jejum que deixou nosso mercado bastante desatualizado, a ponto de celebrarmos, em 1989, a quebra da monotonia com a chegada de um Kadett já com cinco anos de Europa. Na virada da década apenas dois modelos nacionais — o Uno e o próprio Kadett — ainda estavam em sintonia com os países desenvolvidos. Embora a liberação das importações em 1990 tenha contribuído, o fato é que as fábricas já trabalhavam em projetos para recuperar o tempo perdido, como o Tempra (defasagem de um ano), o Escort de 1992 (dois anos) e o Omega (seis anos atrasado diante do alemão, mas ainda um passo expressivo para nossa indústria).

E retomamos velocidade com rapidez nos anos 90, quando reduzimos o intervalo entre o Brasil e o Primeiro Mundo para um ano (Corsa, S10, o Astra de 1998) ou mesmo seis meses, nos casos do Ka, do Fiesta e do Vectra de 1996 — sua geração anterior, que os europeus conheceram em 1988, havia levado cinco anos para cruzar o Atlântico. O Golf alemão de 1997 tornou-se brasileiro em dois anos (prazo que valeu também para o Marea) e trouxe junto o Audi A3, só um ano mais velho. A comparação não é possível em exemplos como Gol e Palio por se tratar de projeto local (o VW) ou de carro desenhado para mercados em desenvolvimento (o Fiat). Os novos fabricantes instalados na segunda metade da década seguiram o padrão de pequena defasagem: um ano no Dodge Dakota e no Civic brasileiro, um e meio no Clio nacional, três no Mercedes-Benz Classe A e na Scénic. Mesmo a Toyota, mal acostumada aos 40 anos de escassa atividade do Bandeirante, ingressava no segmento de automóveis em 1998 com um Corolla equivalente ao japonês de três anos antes.

Fabrício Samahá, editor

Ativo por inércia
Nos primeiros anos da década de 2000, ainda como consequência do crescimento do mercado em 1997, o ritmo se manteve como que por inércia. Passamos a fabricar novos Polo e Fiesta com defasagem de seis meses, Citroën C3 com um ano e meio, e Zafira, novo Corsa e Stilo com dois anos (mesmo tempo para o Focus feito na Argentina), além do caso peculiar da Meriva, lançada aqui antes mesmo da Europa. Por outro lado, começavam a se delinear duas correntes: de um lado, fabricantes que mantinham a agilidade em nos trazer seus lançamentos internacionais; de outro, os que apostavam na fórmula de prolongar por tanto tempo possível o ciclo de produção de velhos projetos, para maximizar lucros.

O primeiro time era formado pelas japonesas Honda e Toyota (que trouxeram novos Civic e Corolla em poucos meses, o primeiro Fit em um ano e meio e o Hilux em simultâneo a outros mercados) e contava com alguma participação francesa, caso da Citroën Xsara Picasso, que veio dois anos após a europeia. No segundo grupo estavam de certa forma todas as demais, em especial General Motors e Volkswagen, que deixavam o tempo passar no exterior como se nada estivesse acontecendo. Novas gerações de Vectra em 2002; Astra, Golf e Scénic em 2003; Focus em 2004; Corsa, Zafira e Clio em 2005; Stilo (Bravo) e Peugeot 206 (207) em 2006 estreavam na Europa, mas eram consideradas sofisticadas e caras demais para o mercado brasileiro. Algumas vieram com muito atraso, como os quatro anos do Mégane e do segundo Focus. Na base do mercado, antigos projetos como o Corsa de 1994, Palio, Gol e Ka eram reciclados na aparência — no primeiro caso sob o nome Celta — sem avanços técnicos.

Nos últimos anos as rodas voltaram a girar, mas não à mesma velocidade para todas. À parte Honda e Toyota, as únicas que preservaram a rápida atualização em suas linhas (não sem cobrar por isso, claro), recebemos Punto e Idea defasados em dois anos, mas com diferenças técnicas para os italianos; o Astra de 2003 chegou após quatro anos, veio promovido a Vectra GT e equivalente ao alemão só na aparência; o Citroën C4 hatch levou cinco anos e o Focus também demorou tanto que houve tempo de vir com a reestilização adotada ao meio ciclo de vida do europeu. Em vez de novos Corsa e Clio, tivemos de aceitar Agile (feito sobre a plataforma do Celta, isto é, o Corsa de duas gerações atrás) e Sandero, projetos para países menos desenvolvidos. Peugeot 207? Só veio o nome, que foi aplicado a um retoque no 206. E a segunda Scénic francesa, que chegou cinco anos atrasada, acabou deixando o mercado em pouco tempo porque saiu de linha na origem para dar lugar à terceira, ainda sem previsão de aportar.

Como a concorrência raramente agia de outra forma, coube ao consumidor, em vários segmentos, aceitar essa acomodação. A imprensa não concorreu para um quadro melhor: no caso do 207 nacional, uma parte dela aceitou bovinamente a alegação da Peugeot de que um novo modelo similar ao francês teria preço próximo ao de um Civic, embora até a Honda conseguisse oferecer um compacto muito atual (o segundo Fit) por menos. Houve ainda quem elogiasse a marca por lançar o sedã Passion como se fosse uma criação própria da unidade brasileira, não um mero transplante do modelo da Iran Khodro iraniana.

Em meio a todo esse cenário, a GM lança no começo de abril um "novo" Classic, a primeira renovação visual — e apenas visual — do modelo em produção há mais de 14 anos. Como ficará? Igual ao Chevrolet Sail que era fabricado na China pela Shangai GM. Você leu certo: era. Não é mais, pois o exigente (ao menos em comparação ao nosso) mercado chinês, o maior consumidor de automóveis do globo hoje, justificou o lançamento de uma nova geração do Sail com estilo e mecânica atualizados. Não seria surpresa encontrar no Brasil maquinário de produção de que os asiáticos não precisam mais, tal e qual o ferramental norte-americano com que a Willys fazia o Aero há 50 anos. O mesmo pode ser dito do primeiro Hyundai a ser feito no Brasil: o Tucson que saiu de linha na Coreia do Sul. Refugo seria um termo forte demais?

Em um mercado que absorveu 3,14 milhões de veículos no ano passado e não dá sinais de queda adiante — pelo contrário —, o quadro é no mínimo preocupante. E traz à tona um dilema que lembra a propaganda de biscoitos: ainda compramos esses carros porque são os que nos oferecem, ou nos oferecem esses carros porque continuamos a comprá-los?

Começavam a se delinear duas correntes: de um lado, fabricantes que mantinham a agilidade; de outro, os que prolongavam por tanto tempo possível o ciclo de produção de velhos projetos.

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Data de publicação: 27/3/10

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