Neste agosto completa 20 anos uma ideia que alguns consideram um
acerto, e outros, um equívoco: o benefício fiscal aos carros
equipados com motor de até 1,0 litro de cilindrada, que tiveram seu
pioneiro no Uno Mille. Lançado em agosto de 1990, o primeiro "carro
mil" foi uma rápida resposta da Fiat à providência do então novo
governo federal, o de Fernando Collor de Mello, à redução da
alíquota de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de 40%
para 20%.
Surgiu na época a figura do "carro popular", expressão que alguns
ainda empregam — até na imprensa —, apesar de sua inadequação ao que
esses modelos representam hoje. O mesmo presidente Collor havia
confiscado as cadernetas de poupança, em março daquele ano, e o
mercado vivia um quadro de grave recessão. Comenta-se no setor que a
Fiat teria "vendido" a ideia à ministra da Economia, Zélia Cardoso
de Mello, aproveitando o fato de ser o único fabricante com carro e
motor praticamente prontos para lançar às ruas. Bastava uma simples
redução de cilindrada à unidade de 1.050 cm³ em uso desde o 147 e
que equipava o Uno S.
E aquele carrinho espartano, que vinha sem encostos de cabeça nos
bancos dianteiros ou quinta marcha — a não ser como opcionais —, mas
custava 15% menos que um Gol CL ou Uno S, logo conquistou seu
espaço. Primeiro porque era mesmo mais barato, acessível a quem
antes só podia ter um carro usado, e depois porque dava conta do
recado. Mesmo com potência (48,5 cv) e torque (7,4 m.kgf) bem
modestos, o motorzinho de 994 cm³ empurrava dignamente os 800 kg do
Mille, levando-o a acelerar de 0 a 100 km/h em cerca de 17 segundos
— pouco mais lento que alguns carros de certo luxo da época, como
Del Rey e Opala quatro-cilindros.
A concorrência foi pega de surpresa: Chevette, Gol ou Escort eram
fabricados apenas em versões de 1,6 litro para cima e havia dúvidas
sobre como ficaria seu desempenho com a cilindrada tão reduzida.
Mesmo assim, General Motors, Volkswagen e Ford incumbiram suas
engenharias de desenvolver o que se tornariam o Chevette Junior, o
Gol 1000 e o Escort Hobby, lançados nesta ordem entre 1992 e 1993 —
o primeiro deles, longos 18 meses atrás da Fiat. Os resultados não
foram dos melhores, mas o mercado queria o "mil" e assim foi feito.
Já na época havia quem apontasse um equívoco na definição do
benefício tributário: 1.000 cm³ seriam insuficientes para os carros
que produzíamos — em geral pesados e projetados para motores maiores
— e para nossas condições de uso, com topografia acidentada. Teria
feito mais sentido incentivar a criação de versões simplificadas,
talvez com um limite de preço, mas com cilindrada mais adequada. Por
exemplo, até 1.600 cm³, que na época já mostrava bons resultados em
conciliar desempenho e economia em qualquer de nossos carros do
segmento de entrada. Foi com essa cilindrada, afinal, que o Gol saiu
do fiasco inicial e chegou à liderança do mercado em 1987.
A distorção esteve perto de ser corrigida na gestão do sucessor de
Collor, Itamar Franco, quando lançou em 1993 o programa do carro
popular — agora uma denominação oficial. Itamar sugeriu à VW que
relançasse o Fusca, o que foi um devaneio: o projeto dos anos 30 já
não atendia às necessidades do consumidor urbano e, colocado em
produção no mesmo ano, o "Fusca Itamar" teve vendas discretas. Por
outro lado, o programa estendeu a quase eliminação de IPI a modelos
como o Chevette 1,6, o que relativizava a limitação a 1,0 litro —
mas só para esse fabricante e a própria VW. Para outras marcas o
limite permaneceu em 1.000.
Surgiram dali os Fiorinos furgão e picape com motor do Mille,
veículos de carga sem motorização suficiente para levá-la. Depois,
versões de 1,0 litro do Corsa sedã (em sua versão inicial, incapaz
de arrancar em subidas íngremes), de Siena e Palio Weekend (com o
recurso de seis marchas curtíssimas para manter o motor em alta
rotação), da Parati (com motor de quatro válvulas por cilindro para
a maior potência até então, 69 cv). Se os cavalos já superavam por
larga margem os 48,5 do primeiro Mille, o peso também deixara muito
para trás seus adequados 800 kg. Uma Weekend pesava 1.075 kg para 61
cv, uma relação peso-potência pior que a do pioneiro Uno. |
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Popular com turbo
O programa do carro popular foi-se desvirtuando, tanto pelo
acréscimo de itens de conforto (quase todos já ofereciam
ar-condicionado e direção assistida como opcionais) quanto pelos
métodos para aumento de potência, incoerentes com a proposta de
veículos acessíveis. O auge foi em 2000 com o Gol Turbo, seguido
após dois anos pelo Fiesta Supercharger: um com turbo, outro com
compressor, conseguiam desempenho
próximo ou até superior ao de versões de 1,6 litro, às custas de
maior complexidade mecânica. O resultado é que os motores eram caros
— sobretudo o da VW — e só existiam porque eram beneficiados pela
redução de imposto. Sem ela, nem teriam sido desenvolvidos.
A essa altura, era voz corrente na imprensa — como no Best Cars
— e até em alguns fabricantes que as alíquotas de IPI precisavam ser
revistas para reduzir o grande degrau entre os "mil" e os carros de
cilindrada superior. Um fator objetivo apontava o problema: a faixa
de 1,0 litro já respondia por 70% do mercado de automóveis novos. O
Brasil estava se tornando o país do carro 1.000.
Em 2002 o governo de Fernando Henrique Cardoso aceitou rever o
assunto e lançou um novo escalonamento, que ainda beneficiava o
motor de 1,0 litro: IPI de 10% para eles e de 25% para os de demais,
até 2,0 litros. Mesmo favorecidos dessa forma, alguns "mil" perderam
muito apelo. O Polo 1,0 16V nasceu morto, lançado em simultâneo à
divulgação das novas alíquotas, e o Gol Turbo e o Fiesta
Supercharger perderam a posição de destaque nos planos de vendas de
seus fabricantes até desaparecer. Com o tempo, versões 1,0 de
Parati, Palio Weekend, EcoSport outros modelos mais pesados saíram
de produção.
Nesses oito anos, contudo, nada mais mudou. A indústria, estimulada
por — e estimulando de volta — consumidores que veem os números de
potência como único indicativo de desempenho, continuou na "corrida
de cavalos" e já chega à faixa de 80 cv em motores de
aspiração natural, mais de 60% acima
do que conseguia o pioneiro Mille. Ganhou-se também em torque em
baixa rotação, mas aquém do necessário para que os novos carros de
1,0 litro, pesados (vários com mais de 1.000 kg) e muitas vezes com
ar-condicionado em operação, pudessem oferecer a desenvoltura
desejada.
Ainda há modelos, como Voyage e Siena, que não conseguem fazer de 0
a 100 (em testes reais, não números de fábrica) em tempo menor que
os 17 segundos do velho Uno. Com ar ligado e lotação máxima de
passageiros e bagagem, o quadro fica bastante pior. Mesmo os que
apresentam melhor desempenho nesses números são, em geral, modestos
em baixa rotação. Exigem muito uso do câmbio para se obter agilidade
e, como é hábito brasileiro não gostar de reduzir marchas na
estrada, recorrem a câmbios curtos que levam o motor a rotações
elevadas — em
geral mais
de 4.000 rpm a 120 km/h, velocidade comum nas boas rodovias
—,
com reflexos no nível de ruído e no consumo. Mesmo quando não falta
potência, são escassos o conforto e o prazer de dirigir.
Se 1.000 cm³ fossem o bastante para os carros compactos de hoje,
haveria o mesmo incentivo em mercados desenvolvidos como os da
Europa, onde combustível também é caro e a carga tributária não é
pequena. Mas não há. O que recebe atenção por lá é consumo e emissão
de gás carbônico (CO2), que podem ser reduzidos pelo emprego de
tecnologia e aumento da eficiência em qualquer cilindrada. O único
caso de estímulo a motores tão pequenos no Primeiro Mundo vem do
Japão, com os kei jidosha ou "carros K", limitados a 660 cm³. Mas
são projetos específicos de minicarros com limite legal de tamanho e
que, sem a obrigação de custar pouco, usam turbo e outras soluções
para entregar bom desempenho.
Vinte anos depois de uma boa ideia — beneficiar via impostos a
criação de carros mais acessíveis — que poderia ser melhor,
insistimos no erro de usar motores insuficientes em carros que de
populares não têm mais nada. Uma revisão que levasse o limiar a 1,4
ou 1,6 litro ou estabelecesse outros critérios, como limites de
preço e de consumo, seria muito oportuna para devolver a fluidez de
tráfego a nossas rodovias e o prazer de dirigir a mais brasileiros. |
A faixa de 1,0
litro já respondia por 70% do mercado de automóveis novos. O Brasil
estava se tornando o país do carro 1.000. |