Em
questão de semanas, a Fiat quase extinguiu de sua linha nacional o
uso do motor de 1,8 litro adquirido da General Motors, a ex-sócia em
âmbito mundial em um casamento desfeito em 2005. Começou pelo Punto,
seguiu pela linha Palio e, por enquanto, terminou na Idea — restou o
Stilo, que talvez mantenha o motor "estrangeiro" por mais uns poucos
anos até dar lugar ao esperado sucessor, o Bravo.
Não se trata aqui de comparar o motor que saiu com os dois (de 1,6 e
1,8 litro) que entraram, o que tem sido feito nas avaliações dessas
novidades. O que se nota é que afinal, depois de oito anos do início
da implantação do propulsor GM, quase toda a linha Fiat voltou a ter
motores com sua identidade, seu modo de operar — mesmo que as
unidades FPT sejam evoluções do motor Tritec usado pela primeira
geração do Mini da BMW. E esse fator, para quem vê num automóvel bem
mais que um meio de transporte, tem importância.
A parceria que se rompe na Fiat não foi a primeira, nem deverá ser a
última em nossa indústria: fabricantes usam motores de outras marcas
por diferentes motivos, sejam associados ou não em um mesmo grupo.
Quando a Peugeot começou a fabricar o 206 em Porto Real, RJ, em
2001, não tinha em sua gama europeia de motores uma unidade de 1,0
litro com alta potência específica
como a da concorrente, já que no Velho Mundo nunca houve o
injustificado benefício tributário até esse limite de cilindrada (leia
o editorial anterior). A solução foi adquirir motores da Renault
— ela mesma, a rival de tanto tempo —, o que durou até que a Peugeot
adotasse a própria unidade de 1,4 litro, em 2003.
Também em 2001, um lançamento argentino trouxe-nos outro caso de
rivalidade sob o capô: o utilitário esporte Chevrolet Tracker
chegava com um motor turbodiesel da Mazda. A causa da estranheza foi
que a marca japonesa tinha 34% de suas ações controladas pela Ford,
logo a mais tradicional adversária da GM no mercado original, os
Estados Unidos. Por outro lado, a Suzuki — fabricante do Tracker que
o vendia como Grand Vitara até sair do Brasil, pouco antes —
mantinha parceria no Japão com a Mazda, cedendo modelos para que
esta os vendesse com seu logotipo. O Mazda Proceed Levante, por
exemplo, era o próprio Grand Vitara. O Tracker logo trocou de motor,
que continuou vindo de fora: da Peugeot.
Bem antes disso, houve no Brasil a fusão da Volkswagen com a Ford na
Autolatina, que durou de 1987 a 1995 e resultou na permuta de
motores e até de carros inteiros (o Ford Versailles era um Santana e
os VW Apollo, Logus e Pointer eram derivados do Escort, mas esse é
assunto para outro editorial). Em 1989 o motor AP-1800 da VW ganhou
os cofres de Escort e Del Rey, trazendo-lhes desempenho bem
superior, enquanto o Gol recebia a unidade CHT da Ford — renomeada
AE-1600 — e se tornava mais econômico, mas sem o brio anterior.
Se o motor VW nos Fords foi bem recebido, a não ser pelos mais
puristas, houve muitas críticas à unidade Ford no Gol. A troca nunca
foi feita para o mercado argentino, embora a associação entre as
empresas também vigorasse por lá. Em 1993 o Gol vendido aqui voltou
a ter motor "de casa" na versão 1,6, mas o 1,0 permaneceu o AE até
1996, já depois da dissolução do casamento. Vale lembrar que o
próprio CHT ou AE não era, em sua origem, um Ford: surgiu na
Renault, como o Ventoux do Dauphine, e foi crescendo em cilindrada
de 845 até 1.555 cm³. É que foi de um projeto da empresa francesa
que se originou o Corcel, em 1968.
Foi também naquela década, em 1994, que o longevo Toyota Bandeirante
abandonou o motor Mercedes-Benz para usar um da própria fábrica. E,
como no caso do Gol-Ford, houve ganhos e perdas: a unidade japonesa
era mais moderna, suave e potente em alta rotação, mas oferecia
menos torque em baixos regimes e fazia esperar menor durabilidade
que o "indestrutível" motor da marca alemã. Criaram-se duas
correntes entre os fãs do valente utilitário, cada uma adepta de um
tipo de propulsor. |
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Carros fora de série
Quem sempre usou motores de outra marca foram os fabricantes de
carros "fora de série", empresas pequenas e sem os vultosos recursos
necessários para desenvolver e produzir o "coração" de um automóvel.
O antigo boxer arrefecido a ar da VW
motorizou tudo o que se possa imaginar, de esportivos como o Puma a
jipes e furgões como os da Gurgel, em meio a uma infinidade de
marcas. Os 1,5, 1,6 e 1,8 "a água" da mesma marca estiveram em Miura,
Puma, Hofstetter e outros. Houve os que recorreram às mecânicas do
Chevette (caso do Avallone, réplica de MG), Opala seis-cilindros
(Puma GTB, Santa Matilde e vários outros), Maverick V8 (Glaspac,
réplica do Cobra) e até do Fiat 147 (os esportivos Farus e Dardo).
Há também casos em que um mesmo motor equipa veículos de marcas
diversas, sem estar vinculado a qualquer dos fabricantes. A
International
passou a fabricar no Brasil em 1995 uma unidade turbodiesel de 2,5
litros, similar à usada na Inglaterra pela Land Rover, que equipou
tanto o S10 quanto o Ranger e o F-1000 — havia pequenas diferenças
de calibração e pelo uso de resfriador
de ar apenas nos picapes da Ford. Anos depois, esses modelos
receberam novos motores de fornecedores externos, como é comum no
segmento a diesel: o do S10 da MWM (que também esteve no Nissan Frontier de
geração anterior), e o do Ranger, da International (que já fornecia
o mesmo para o jipe Troller antes da compra desta marca pela Ford).
Em 2005, contudo, o grupo International adquiriu a MWM, marca que
foi a única a permanecer no Brasil.
E é bom que se saiba: comprar motores de terceiros não é expediente
exclusivo da indústria nacional. A GM norte-americana, mesmo com
toda sua gama de unidades de seis cilindros a gasolina, foi buscar
na Honda o V6 de 3,5 litros usado anos atrás no Saturn Vue,
utilitário esporte que, em sua geração posterior, seria nosso
Chevrolet Captiva. Outro V6 da Honda, há mais tempo, esteve sob o
capô dos carros ingleses da Rover durante uma parceria entre os
fabricantes.
Por outro lado, nasceu na GM o V8 a gasolina de 3,5 a 5,0 litros (da
divisão Buick) que impulsionou por muito tempo os utilitários da
Land Rover, sendo vendido pela marca inglesa para pequenos
fabricantes como Triumph, Morgan e TVR. Outras unidades da GM
equiparam modelos da Jeep, caso do Wagoneer com um V8 de 5,7 litros
e do CJ com um quatro-cilindros de 2,5 litros. Mais tarde, a mesma
Jeep adotou um turbodiesel da sócia Mercedes-Benz no Grand Cherokee.
Unidades V6 da Mitsubishi também equiparam diversos carros da
Chrysler.
Há ainda os desenvolvimentos em conjunto, como o da Ford com a
Yamaha para o motor do Taurus SHO. Ou o de BMW e Peugeot Citroën
para o 1,6-litro que vem tanto no Mini quanto nos 207 (versão
francesa), DS3 e outros modelos do grupo PSA. Ou ainda a chamada
Aliança Global para Fabricação de Motores, que envolve Chrysler,
Hyundai e Mitsubishi e obtém unidades de 1,8 a 2,0 litros usadas
pelas três.
Como se vê, fornecer motores, permutá-los e comprá-los de outros são
práticas consagradas mundo afora, mesmo que possam dar margem a
críticas. Para quem recorre a outro fabricante para esse elemento
tão importante do automóvel, um cuidado importante é garantir que
ele atenda plenamente aos objetivos do modelo, que seja tão
bem-aceito por um cliente exigente quanto seria um motor da própria
marca.
Como em um transplante de coração, todo o cuidado deve ser tomado
para não haver risco de rejeição do novo órgão pelo corpo que o
recebe. |
Quando o Toyota
Bandeirante abandonou o motor Mercedes-Benz para usar um da própria
fábrica, criaram-se duas correntes entre os fãs do valente
utilitário. |