Nossa história se passa em um antigo reino, séculos atrás, quando o
automóvel ainda não havia sido inventado e as pessoas se locomoviam,
em geral, em carruagens puxadas por cavalos. Era um grande reino,
com extensões continentais, o que fomentava a demanda por mais e
mais carruagens, já que outras alternativas de transporte estavam
longe de satisfazer à população.
Quatro construtores de carruagens,
unidos na Ancovea (Associação Nacional dos Construtores de Veículos
de Tração Animal), dominavam o mercado. Não que apenas essas
empresas fizessem carruagens no mundo: é que naquele reino, por
alguma razão difícil de entender, era proibido importá-las.
Naturalmente, essa restrição tornava as coisas confortáveis para
aqueles construtores.
Não importava o que oferecessem ao
mercado, havia demanda, mesmo que as carruagens estivessem
superadas ou não fossem de alta qualidade. Como exemplos, a empresa
Carruagem do Povo usava suspensões desconfortáveis e cabines
mal-acabadas, enquanto a Carruagens Gerais, para aumentar os lucros,
vendia veículos puxados por cavalos velhos, que andavam devagar e
comiam muito capim.
Um dia, o rei experimentou uma bela carruagem vermelha feita em
outra região, com puros-sangues velozes e o logotipo de um
cavalo empinado. E veio dizer ao povo que ele — não o rei, mas o
próprio povo — estava nu. Segundo suas palavras, naquele reino só se
faziam... carroças.
Mais que pela conclusão, que já era de conhecimento geral, o rei
ganhou popularidade pela ordem que deu em seguida: dali em diante,
seus súditos poderiam importar carruagens de onde desejassem. As
portas do mundo estavam, afinal, abertas. Claro que isso não sairia barato: foi definido um
IIC (Imposto de Importação de Carruagens) de 85%, ao qual se somavam dezenas
de outros tributos. No reino, o que não faltava eram impostos,
taxas e contribuições ao rei — já que alguém precisava sustentar a
máquina estatal, ou melhor, real.
O povo, mesmo escorchado pelos impostos, comemorou. Chegaram
carruagens modernas ou nem tanto, simples ou sofisticadas, de reinos
próximos ou dos mais distantes — até uma de origem russa —, e a paisagem das ruas e estradas do reino se tornou
mais variada. As empresas que vieram de fora se organizaram na Areiva, Associação Real de Empresas Importadoras de Veículos de
Tração Animal.
Os quatro tradicionais construtores, para manter seu mercado,
renovaram suas carruagens com cabines
mais espaçosas e bem-acabadas, suspensões mais confortáveis, cavalos
mais dispostos e sem tanto apetite pelo caro capim (sim, o capim no
reino também era severamente tributado). Empresas de outros locais foram se instalar no reino,
interessadas em um mercado que crescia com rapidez — cada vez mais
pessoas podiam comprar uma carruagem, ainda que muitas
empenhassem excessiva parcela de sua renda nos pagamentos mensais.
Preocupadas com a perda de sua hegemonia, as empresas mais
antigas tiveram uma ideia. Em parceria com os produtores
de grãos, convenceram o povo de que novos cavalos, que comiam tanto
capim quanto farelo, eram muito melhores que os antigos, alimentados
apenas com capim. "Agora você pode escolher", anunciavam,
acrescentando o argumento ambiental de que as — digamos — emissões
poluentes dos cavalos seriam reduzidas com o novo alimento. De
repente, todos no reino queriam os chamados cavalos Flex Food, ou flexíveis em
alimentação.
Foi um grande estímulo para as vendas de carruagens nacionais. Os
construtores recém-chegados, que traziam animais de outras origens
para puxar suas carruagens, e os importadores saíram perdendo:
ninguém mais dava valor a cavalos não flexíveis, embora eles comessem menos e andassem mais entre as paradas
para se alimentar que os Flex Food. A rejeição durou alguns anos, até que também as
associadas à Areiva oferecessem carruagens com tais cavalos.
O mais curioso é que, depois que os animais Flex Food tomaram conta das
ruas, os produtores de farelo elevaram muito seu preço e,
por todo o reino, só se viam cavalos comendo capim... como em outros
tempos. |
Novos concorrentes
Cerca de 20 anos passaram-se desde a abertura do reino às
carruagens importadas. Os famosos quatro construtores, que em outras
épocas vendiam com facilidade, enfrentavam
agora novos concorrentes. Havia as carruagens coreanas, com cabines
modernas e cavalos que comiam pouco, e as chinesas, bem-equipadas a
preços atraentes — embora
muitos desconfiassem da robustez de seus cavalos para as severas
condições de uso praticadas no reino.
Apesar da concorrência, os construtores "nacionais" — assim chamados
embora fossem procedentes de outros reinos, para onde enviavam os
lucros — não vinham se defendendo à altura. Em termos de tecnologia,
acabamento e eficiência, suas carruagens estavam bem aquém das
importadas, embora tivessem cabines com frisos e adornos, cavalos
mais decorados e rodas cujo desenho mudava a cada dois anos
— segundo uma das empresas, "para atrair o cliente no momento exato
em que ele termina de pagar pela carroça anterior".
A maior novidade dos últimos anos eram as carruagens "aventureiras",
com cabine mais alta, rodas maiores e uma ameaçadora barra frontal
de madeira, mas que atolavam com a mesma facilidade das
convencionais.
Reunidos na Ancovea, os construtores protestavam. "Nossos
concorrentes vendem carruagens feitas com mão de obra escrava!",
bradava um dos empresários. "Elas são
puxadas por pôneis malditos", exaltava-se o dono da Carrossan.
"Vamos ter que demitir pessoal se continuar essa importação
desenfreada", ameaçava o da Carruagem do Povo. "Ninguém mais quer nossos cavalos velhos. Estamos com os pátios
cheios!", reclamava o proprietário da Carruagens Gerais.
"A rainha deve tomar providências!" — gritaram, em uníssono.
O que os associados à Ancovea não diziam, embora estivesse à vista
do povo, é que eles mesmos vinham trazendo milhares de carruagens e cavalos de
outros reinos sem pagar o IIC, baseados
em acordos comerciais como o Mecresul, o Mercado Comum dos Reinos do
Cone Sul. Se carruagens importadas respondiam por "preocupantes" 20%
das vendas do reino, três quartos dessa parcela cabiam a importações
dos próprios construtores da Ancovea. As outras empresas,
ligadas à Areiva, detinham apenas 5% das vendas.
E a Ancovea não importava só carruagens de luxo. Alegando que era muito caro
construí-las no reino, os empresários já traziam as de todos os segmentos.
O caso mais extremo era o da Carrossan, que começava a trazer de
fora uma nova carroça do tipo 1.0. Tracionadas por
pôneis de baixa capacidade, que mal conseguiam subir ladeiras, as
1.0 eram um equívoco criado por incentivos fiscais.
Gerar empregos no reino? Ora, isso não era relevante. Servia apenas
como discurso para pressionar a rainha a atender sua demanda.
Pois a autoridade maior do reino, em reunião no castelo com seus
subordinados e representantes da Ancovea, decidiu: a partir do
dia seguinte — sem o habitual prazo para entrada em vigor —, as
carruagens importadas teriam de recolher uma alíquota triplicada do
IPA (Imposto sobre Produtos Artesanais). Para surpresa geral, as
empresas instaladas no reino continuariam a trazer carruagens de
reinos participantes de acordos comerciais sem pagar o IPA
adicional. Uma grande rasteira nos demais importadores!
Seguiram-se grandes protestos, tanto da Areiva quanto dos súditos,
já acostumados à saudável concorrência entre carruagens nacionais e
importadas. E o que aconteceu depois surpreendeu a todos.
Unido, o povo do reino
deixou de comprar carruagens por vários meses. Preferiu manter as
antigas, trocar ferraduras gastas, consertar rodas quebradas
— e como havia buracos nas estradas do reino! — e tratar os cavalos
que adoecessem após comer farelo adulterado, outro grave
problema por lá. Ninguém ficou a pé por não trocar sua carruagem
azul por uma verde (naquele reino, por alguma razão, só havia
carruagens dessas duas cores) ou por manter seu cavalo a capim em
vez de comprar um Flex Food.
Na Areiva, as importadoras de carruagens viviam sérias dificuldades.
Muitas já haviam fechado as portas, desistindo de um reino que
queria crescer, mas não mostrava seriedade nas relações
internacionais. Na outra associação, a Ancovea, anunciavam-se
seguidos prejuízos e percebia-se que a manobra para dominar o
mercado não havia dado certo. Os súditos da rainha mostravam que
não eram bobos: sabiam lutar por seus direitos.
Nossa história termina com uma grande vitória. Pressionada pelos
protestos, a rainha anunciou o fim da penalização aos importadores.
Os súditos, respeitados,
suspenderam o boicote. Voltaram a comprar carruagens nacionais e
estrangeiras, as empresas renovaram seus produtos, os preços caíram
como resultado da concorrência. Os construtores locais continuaram
lucrativos e outros chegaram para montar veículos ali, confiantes na
seriedade que se vislumbrava.
Desde então, nunca mais se ouviu falar em "proteger a carruagem
nacional" naquele reino. A lição foi aprendida. |
Os quatro
construtores, que em outras épocas vendiam com facilidade,
enfrentavam agora as carruagens coreanas e chinesas |