Primeiro foi o engenheiro com um Porsche 911 Turbo que, em julho,
atingiu o Tucson da advogada que cruzava um sinal vermelho em São
Paulo, levando-a à morte. No mesmo mês, uma nutricionista atropelou e matou um
administrador, também na capital paulista, capotando um Range Rover.
Mal começou agosto e outro administrador destruiu um Chevrolet Camaro — repetindo o que fizera em 2007 com um Ferrari F430 — em São
Bernardo do Campo, SP, ao invadir uma praça.
Quando a onda parecia ter terminado, outro caso envolvendo um Camaro
no fim de setembro: dessa vez um jovem de 19 anos em São Paulo bateu
em cinco carros até parar, tendo levado à morte do motorista de uma
Towner que se incendiou com o impacto.
Em comum entre os quatro recentes acidentes, alguns fatores: carros
de alto desempenho, consumo de bebida alcoólica e, em maior ou menor
grau, excesso de velocidade. Uma combinação explosiva, sem dúvida,
mas também perfeita para que os casos ganhassem projeção nacional na
imprensa. Sem o primeiro desses elementos as notícias cairiam na
mesmice, tornando-se parecidas com milhares de casos que acontecem
todos os dias em um dos países onde o trânsito mais mata e deixa
sequelas.
Sensacionalismo à parte, podem-se tirar algumas lições dos casos.
Para começar, chama atenção a presença cada vez mais frequente de
carros potentes em acidentes como esses. Há 10 ou 15 anos, quando os
modelos importados de alto desempenho já tinham razoável presença no
mercado, raramente se ouvia falar de colisões graves em que seus
donos tirassem a vida de terceiros. Houve, é verdade, casos
memoráveis por se tratar de pessoas conhecidas, como o do então
jogador de futebol Edmundo, que matou três pessoas com um Jeep Grand
Cherokee em 1995, e o do cantor Ivair "Renner" Gonçalves, que em
2001 tirou duas vidas ao atingir uma moto com um BMW.
Nesse aspecto, o que parece ter havido é uma popularização —
guardadas as proporções — da potência dos motores. Um carro de 400
cv era algo quase inatingível anos atrás, coisa para Ferrari e
Porsche dos mais caros. Hoje existe um Camaro de R$ 200 mil com esse
patamar de desempenho, sendo natural que muito mais pessoas tenham
acesso a um carro tão potente.
Entretanto, seria leviano — apesar de feito com frequência por parte
da imprensa — apontar os carros velozes como responsáveis pelos
graves acidentes, pelo simples fato de que automóveis não disparam
pelas ruas sozinhos. Logo após o acidente com o primeiro Camaro, uma
reportagem (?) do canal de TV Record tentava mostrar como seria
difícil, perigoso até, dirigir o esportivo. Para impressionar o
espectador, o carro foi filmado de dentro, acelerando em uma rua
estreita, como se fosse uma besta incontrolável e assassina. |
Os fatores da segurança
Quanta bobagem! Há milhares de Camaros, Mustangs e carros mais
potentes que eles rodando pelos Estados Unidos; Porsches, Mercedes e
BMWs trafegam por horas a mais de 200 km/h todos os dias pelas
autobahnen alemãs, e tais países não se tornam palco de uma
carnificina por isso. Milagre? Proteção divina? Não: basta que ao
volante esteja alguém capacitado, em plenas condições de dirigir,
com respeito à vida e temor à lei — fatores que compõem um trânsito
seguro, ainda que rápido.
Capacitação no sentido de formação do motorista. Não é novidade para
ninguém que isso não existe no Brasil, onde se aprende apenas a
passar no exame de habilitação. Bastante já se mexeu no assunto,
encarecendo e complicando o processo para se obter a CNH, mas os
resultados parecem pífios. Há muitos recém-habilitados que não
demonstram conhecimento e treinamento para dirigir no trânsito que
temos, e isso parece que levará gerações para evoluir — se houver,
de fato, um esforço nesse sentido.
Plenas condições de dirigir significam, além do estado de saúde —
que não parecia ser um problema naqueles casos —, ausência ou nível
seguro de alcoolemia. Nos quatro acidentes foi identificado consumo
de bebida alcoólica. Não cabe generalizar, pois entre os casos houve
níveis de ingestão de álcool diversos, mas nos motoristas dos
Camaros esse fator foi certamente decisivo.
Ora, temos uma legislação rigorosa a esse respeito, até mais severa
que a de muitos países de vanguarda, mas excessos continuam a ser
cometidos todo o tempo. O que se percebe é que, depois de uma
fiscalização intensa logo que a "lei seca" entrou em vigor, tudo se
relaxou e os motoristas voltaram a sentir a impunidade de dirigir
após beber. Campanhas incisivas podem ajudar a melhorar esse quadro,
mas só vejo expectativa de resultados concretos de uma forma: com
severa e continuada fiscalização.
É preciso que as pessoas, antes de beber, tenham ciência de que
assumir o volante mais tarde lhes trará grande risco de serem
punidas, já que o perigo de causar um acidente não parece
incomodá-las.
Terceiro fator: respeito à vida. Quando vejo que o jovem do caso
mais recente — o do Camaro que bateu em cinco carros — tinha apenas
19 anos, o que me vem à mente é a falta de educação do rapaz no
sentido de respeitar sua vida e a do próximo. Como um pai permite
que seu filho dessa idade tenha um carro de 400 cv? Não sabe ele que
os jovens se sentem inatingíveis, como super-homens? E quanto ao
rapaz, não sabia que acelerar forte um carro desses exige
capacitação, reflexos e, sobretudo, local adequado? Desconhecia que
assumir o volante embriagado seria caminhar para uma tragédia, mesmo
que estivesse em um Fusca?
É claro que sabia, mas lhe faltaram educação e respeito a si mesmo e
a outras pessoas. Se o Estado não tem como resolver essa
deficiência, pois cabe a cada um de nós transmitir tais valores em
casa, ele certamente pode — e deve — fazer seu papel por meio de
punição exemplar. O que nos leva ao quarto e último fator por um
trânsito seguro: as pessoas devem temer a lei e as consequências de
seus atos.
Temos aí um quadro complexo de fatores que causaram os acidentes,
alguns deles de difícil solução. O importante, porém, é que se dê
atenção aos aspectos que realmente importam, deixando de lado o
sensacionalismo barato de culpar os carros potentes pelos males
causados por motoristas irresponsáveis. |
Muitos rodam a
mais de 200 km/h todos os dias pelas autobahnen alemãs, que não se
tornam palco de uma carnificina por isso |