Entre os métodos bruto e líquido e os muitos critérios de
medição, não é difícil se confundir ao comparar dados técnicos
Dois mais dois são quatro, que são mais que três, certo? Em se tratando das informações oficiais sobre automóveis, nem sempre. Quem lida com elas — seja imprensa, sejam consumidores — encontra divergências entre as formas de medição que podem, em casos extremos, fazer com que dois mais dois sejam cinco ou que quatro signifiquem menos que três.
Veja-se o caso da potência e do torque dos motores. O padrão europeu sempre foi medir potência e torque líquidos, que consideram as perdas causadas por itens como alternador e bomba d’água e as restrições do sistema de escapamento com silenciadores. Esse é o método seguido hoje em todo o mundo, mas os Estados Unidos usavam outro até 1971: potência e torque brutos, medidos por norma da SAE (Society of Automotive Engineers, Sociedade de Engenheiros Automobilísticos) sem os acessórios citados ou silenciadores.
A diferença é pequena em motores de baixa cilindrada, como no Volkswagen Sedã (Fusca) de 1,2 litro, que tinha 30 cv líquidos ou 36 brutos (mais 20%). Em grandes motores, porém, não é raro que o valor bruto seja 50% mais alto que o líquido, caso do Ford Mustang V8 de 4,95 litros (302 pol³) e carburador de corpo quádruplo: os 210 cv brutos do modelo 1971 despencaram para 140 cv líquidos no 1972 (pequena perda pode ser atribuída à taxa de compressão de 8,5:1 em vez de 9:1). É por isso que no Best Cars sempre mencionamos se for informada potência bruta, ou seja, vale o método líquido na ausência dessa observação.
No Brasil a potência bruta foi a mais comum no início da indústria, mesmo para carros de origem europeia — o Renault Gordini era anunciado com “40 hp de emoção”, mas na verdade produzia 32 cv líquidos. O método bruto continuou a ser usado por algumas marcas até a década de 1980 e, em um caso específico, chegou aos anos 90. A Volkswagen, ao lançar sua linha 1990, anunciou aumentos de potência significativos como de 110 para 125 cv no motor de 2,0 litros a álcool do Santana, mas o ganho real era bem menor — boa parte vinha do retorno ao padrão bruto.
Como o Bugatti Veyron teve sua aura associada aos 1.001 cv, a marca definiu que todos os motores teriam um excesso de potência, ou seja, 1.001 hp ou mais
A manobra prosseguiu por alguns anos, incluindo modelos da Ford na época da Autolatina, a associação entre as marcas que vigorou no Brasil e na Argentina de 1987 a 1995. Depois de abandonada, ressurgiu em 1997 com o lançamento do Gol 1000 com motor VW, anunciado com 62 cv (sua potência bruta) e não com os 54 cv líquidos, que o deixavam bem para trás do Fiat Palio de 61 cv e do Chevrolet Corsa de 60.
Vale lembrar que, embora europeus e norte-americanos divergissem acerca dos métodos de medição de potência, isso não tem relação com as unidades de medida. EUA e Reino Unido adotam o padrão inglês hp (horsepower), enquanto na Europa continental vigora o sistema métrico, que usa PS (Pferdestärke, cavalo de potência) na Alemanha e unidades equivalentes em outros países. Os cv usados no Brasil são iguais aos PS dos germânicos.
Mesmo ao se considerar a potência líquida, há uma pequena diferença — o hp vale 1,39% a mais, ou seja, 100 hp são 101,4 cv — que pode até ser desprezada em motores mais comuns, mas ganha relevância quando se trata de 500, 700 ou 1.000 cv. Assim, os 650 hp anunciados nos EUA para o Ford Mustang Shelby GT 500 tornam-se 659 cv quando convertidos para o sistema métrico.
Sobre 1.000 cv, uma curiosidade. O Bugatti EB 16/4 Veyron teve grande parte de sua aura associada a um valor de potência — 1.001 cv —, mas o número seria reduzido na conversão ao sistema inglês, ficando em bem menos sonoros 987 hp. Sabe o que fez a engenharia da nobre marca pertencente ao grupo Volkswagen? Definiu que todos os motores teriam um excesso de no mínimo 14 cv sobre os 1.001 anunciados, de modo que nenhum norte-americano recebesse menos de 1.001 hp.
Hoje ainda há divergência em potência em uma das marcas que atuam no Brasil, a Hyundai, mas a polêmica não tem relação com métodos bruto e líquido, nem com hp e cv. O pivô da discussão foi o Veloster, que teve anunciada para o País a vinda da versão com injeção direta de combustível e 140 cv, mas acabou chegando na de injeção indireta, que tem 128 cv no exterior.
Talvez para mascarar o despojamento, a importadora Caoa manteve o valor de 140 cv, assim como declarou 160 cv para o Elantra de 1,8 litro (148 cv no exterior) e 270 cv para o Azera de 3,0 litros (250 cv lá fora). Questionada sobre as divergências, alegou que a potência adicional teria sido obtida ao recalibrar o motor para a gasolina brasileira com álcool — o que não acontece com nenhuma outra marca. Há quem garanta que os cavalos a mais nascem nos porões dos navios que trazem os carros da Coreia do Sul…
Porta-malas ou piscina?
Mas potência não é a única especificação técnica que pode causar confusão. Capacidade de porta-malas é outro item sujeito a variações, pois há diversos métodos para medir seu volume útil. Um deles usa líquido, que aproveita todos os nichos e frestas, mesmo que você não conseguisse colocar uma chave de fenda ali. Outro, a medição com esferas, que já não aproveita tão bem o espaço e está em desuso. E há o método mais comum hoje, o da ISO 3832.
ISO é International Organization for Standardization ou Organização Internacional para Padronização e, para esse fim, seu critério é similar ao mais antigo da norma VDA (Verband der Automobilindustrie, associação da indústria automobilística, no caso a alemã). O padrão ISO ou VDA para medir porta-malas usa blocos que medem 200 x 50 x 100 milímetros, o que dá 1.000 centímetros cúbicos (cm³) ou exatamente um litro. Assim, quando se anuncia a capacidade de 500 litros pela norma ISO, significa que cabem ali 500 blocos com aquelas dimensões.
A questão fica mais complicada porque nos EUA é usual medir a capacidade de um hatchback, perua, minivan ou utilitário esporte até o teto (ou vidro traseiro), enquanto o resto do mundo a considera apenas até a altura do encosto traseiro ou da cobertura divisória. No novo Volkswagen Fusca a capacidade de 310 litros abaixo da cobertura (método ISO) cresce para 436 litros com o acréscimo desse espaço, nos EUA. Em peruas a diferença aumenta: os 505 litros da Jetta Variant vendida no Brasil, até a cobertura, tornam-se 929 litros até o teto na Jetta SportWagen oferecida lá no Norte, que é o mesmo carro.
O problema é que valores obtidos de formas distintas acabam sendo comparados, o que leva a erro. A Citroën divulga no Brasil a capacidade de 580 litros para o porta-malas do C4 Pallas — um recorde à época do lançamento, 2007 —, mas na Argentina, onde é fabricado, informa 513 litros. A medição com líquido que levava aos 580 litros não é praxe no mercado, sendo mais adequado usar a de 513 obtida com blocos, como fez o Best Cars desde o início. No Peugeot 307 Sedan a diferença era ainda maior: 623 litros com líquido, 506 com blocos.
O fabricante divulgava aqui a capacidade de 580 litros, e no exterior, a de 513: a medição de porta-malas com líquido que levava aos 580 não é praxe no mercado
Dimensões como largura e altura também estão sujeitas a enganos. No material do novo Ford Fiesta nacional constavam duas medidas de largura externa: com retrovisores abertos (1,978 metro) e com os espelhos rebatidos (1,787 m). Informações uteis, sem dúvida, já que é assim que carros são usados — com os retrovisores no lugar ou, se muito, com seu rebatimento para a passagem em locais estreitos. Só que faltava um dado importante: a largura da carroceria sem retrovisores, padrão mais usado pelos fabricantes.
Uma consulta à ficha do similar mexicano (igual nesse aspecto) indicou 1,697 m: esse é o valor a ser usado para comparar carrocerias, mesmo a outros modelos da Ford, que até pouco tempo atrás informava as larguras “com espelhos” e “sem espelhos”. O Fusion da geração anterior, sem espelhos, media 1,835 m — apenas 5 centímetros a mais que o Fiesta “com espelhos dobrados”, quando a diferença real entre as carrocerias é de 14 cm. Isso mostra como comparar bananas a laranjas produz resultados distantes da realidade.
Quanto à altura, o problema concentra-se nos casos em que existem barras longitudinais ou bagageiro no teto de fábrica. Exemplo: a VW declara altura de 1,547 metro para a SpaceFox, e a Chevrolet, de 1,614 m para a Spin, mas só a segunda marca inclui as barras de teto, equipamento que vem nos dois modelos. Se medidas pelo mesmo critério — até o teto ou até as barras —, não será surpresa se a SpaceFox acabar se revelando a mais alta.
Acabou? Não: há ainda o peso. A primeira diferença é entre a medição a seco (sem nenhum fluido, como combustível, óleo lubrificante e líquido de arrefecimento) e a feita “em ordem de marcha”, que inclui todos os fluidos. No caso de automóveis o segundo método é um padrão, mas o peso das motocicletas pode ser informado de uma forma, da outra ou de ambas — e leva a confusões, pois só a gasolina do tanque de uma moto grande pode superar 20 kg.
Ainda sobre peso, em dados europeus é frequente encontrar dois valores, um para método DIN (Deutsches Institut für Normung, Instituto Alemão para Padronização) e outro para EU (União Europeia). O que os diferencia é que o EU inclui um peso-padrão para motorista (68 kg) e bagagem (7 kg) e o DIN não. Como o mais comum (também no Brasil) é não se considerar o motorista, um carro parece mais pesado do que de fato é, caso o peso EU seja comparado ao peso DIN de outro modelo.
Como se vê, não é simples relacionar dados técnicos e, mais ainda, compará-los. Mais uma razão para se escolherem fontes de informação confiáveis e dedicadas à precisão técnica como o Best Cars, nas quais — tanto quanto possível — as diferenças de critérios são evitadas ou explicadas.
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