Diante da expectativa criada, um automóvel pode surpreender
ou decepcionar ao ser dirigido, como os que relaciono aqui
“Carro honesto” é uma expressão — ainda que pouco apropriada, pois honestidade deveria ser característica restrita a seres humanos — que volta e meia se ouve ou se lê, referindo-se a um automóvel que cumpre o prometido, que traz as qualidades esperadas. O que se espera de um carro, naturalmente, varia conforme a marca, a categoria e a faixa de preço, a idade de projeto e até mesmo o que anuncia sua publicidade.
Acima e abaixo do “ponto de honestidade”, porém, estão os carros que surpreendem e os que decepcionam. Não são, necessariamente, os melhores e os piores automóveis já produzidos: conforme a situação, você pode encontrar falhas relevantes no modelo surpreendente que chegam a inviabilizar sua compra, bem como atributos que justificariam, apesar de tudo, adquirir o automóvel dito decepcionante. Além disso, tudo deve ser analisado no contexto da expectativa criada pelo produto e por quem o vende.
Estes quase 18 anos de Best Cars me mostraram vários casos de ambas as categorias, alguns dos quais enumero aqui. Considerei apenas modelos que passaram por avaliações para o site e de uma faixa de preços moderada, abaixo de R$ 100 mil.
O Civic evoluiu e nos premiou com a
versão esportiva Si, que tão bem fazia aos
ouvidos quando acelerada até 8.000 rpm
Os surpreendentes
• Fiat Punto (2007): o aproveitamento de parte da plataforma do Palio, com suas deficiências de comportamento, fazia esperar menos desse carro de belo estilo. Mas o Punto cativou pela estabilidade e o conforto e, com os motores certos (o E-Torq de 1,75 litro e o TJet turbo de 1,4 litro), também pelo desempenho.
• Ford Focus (2000): um grande carro em todas as três gerações, mas a primeira sobressaiu em relação ao que havia na categoria, tanto pelo refinamento dos comandos quanto pela excelência da suspensão em combinar conforto e estabilidade. Bons motores — ainda mais o Duratec que veio cinco anos depois —, um hatch de desenho original, acabamento digno da antiga tradição da marca.
• Ford Ka (1997): o esperado era um carrinho de linhas originais, prático e de mecânica despretensiosa, mas o que encontrei foi um pequeno esportivo disfarçado de transporte de universitária. Com motor de 1,6 litro e 95 cv, versões como Action e XR (lançadas em 2001) garantiam pura diversão: respostas ágeis, volante pequeno, suspensão firme que deixava a traseira escapar quando provocada, ronco de escapamento bem presente.
• Ford Ka (2014): o foco do projeto mudou, a diversão ficou para trás, mas o novo Ka ainda surpreende. Agora é por oferecer, em um segmento habituado a carros simples no interior e na técnica, sensações ao volante que parecem vir de um segmento superior — e de fato vêm, dadas as semelhanças mecânicas com o atual Fiesta. Pena que o motor três-cilindros, por suas incômodas vibrações, merecesse estar no item “os decepcionantes” do texto.
• Honda Civic (2006): os japoneses compensaram o modelo anterior (leia adiante) com um notável progresso sob todos os aspectos. O Civic cativou pelo desenho externo e interno ousado, evoluiu em motor, câmbio e suspensão e nos premiou um ano depois com a excelente versão esportiva Si de 192 cv, que tão bem fazia aos ouvidos quando acelerada até mais de 8.000 rpm.
• Peugeot 3008 (2010): a minivans costuma faltar a vocação para o prazer ao dirigir, mas essa fugiu à regra. Motor turbo de 165 cv, câmbio automático de seis marchas — raro na época — e suspensão bem acertada formaram um grande conjunto, que o grupo PSA só nos permitiria experimentar em sedãs e hatches algum tempo depois.
• Renault Fluence (2011): fez bem à marca francesa a aliança com a Nissan, como mostra esse sedã. Motor, câmbio CVT, suspensão, direção — tudo operava com brilho nessa inesperada mistura de saquê e champanhe. A versão GT Turbo era ainda melhor, embora abrisse mão do motor japonês em favor de um legítimo Renault.
• Toyota Etios (2012): antiquado por fora, nada ergonômico por dentro (o quadro de instrumentos e os difusores de ar falam por si), simples a ponto de incomodar, o Etios faz esperar uma mecânica sofrível. Nada disso: tem motores suaves e de bom torque em baixa rotação, câmbio e direção leves, suspensão ideal para nosso padrão viário. É o típico carro que, se fosse “vestido” bem melhor, não decepcionaria ao ser dirigido — ao contrário de uma dupla de concorrentes mencionada logo adiante.
• Volkswagen Polo (2002): bom exemplo de como se faziam carros pequenos na Alemanha, traduzido para o português. Motor eficiente, câmbio levíssimo e suspensão bem acertada faziam do Polo um prazer para o motorista, mesmo que ele parecesse só um Gol com quatro faróis ovalados. Uma pena que a VW o tenha deixado de lado até acabar.
• Volkswagen Golf (2013): seja pelas próprias virtudes, seja porque ficamos 15 anos estacionados no modelo nacional, o Golf alemão impressionou pelos dotes dinâmicos, a eficiência do motor 1,4 turbo associado ao câmbio DSG e a qualidade geral de acabamento.
Os decepcionantes
• Chevrolet Celta (2000): a GM causou tanta expectativa pelo novo carro de baixo custo, no fim dos anos 90, que o resultado só poderia desapontar. O Celta era simplório no acabamento interno, lamentável na ergonomia e no nível de ruído e ainda custava mais do que o mercado esperava. Não havia evoluções sobre o Corsa que o havia gerado, mas vários retrocessos. Ter encontrado êxito — e estar entre nós até hoje — comprova que o nível de exigência dos brasileiros, nesse segmento, é dos mais baixos do mundo.
• Chevrolet Vectra (2005): outro caso de grande expectativa frustrada. Houve incautos que pagaram R$ 90 mil da época por um Astra requentado, com materiais internos pobres, retrocesso na suspensão traseira (de multibraço passava a eixo de torção) e motores ultrapassados. Ao menos no consumo, a versão de 2,4 litros honrava a tradição do saudoso Opala de seis cilindros.
Nada de errado com o que mudou nos
novos Logan e Sandero: o problema está no
que ficou, como motor, ruídos e vibrações
• Honda Civic (2000): embora tenha tirado da liderança dos sedãs médios o bom Vectra da época, deixava bastante a desejar. A suspensão era desconfortável, o acabamento interno não passava do regular e o motor básico (sem o comando variável VTEC) combinava torque de menos em baixa rotação com vibrações demais em alta.
• Honda City (2009): o primeiro Fit havia conquistado pela praticidade, o espaço para seu porte e a economia. O City pôs tudo isso a perder pelas limitações de uso de um sedã, o teto mais baixo (não previsto no projeto, que fazia o motorista se sentar alto porque o tanque de combustível estava sob o banco) e o motor tão ruidoso que parecia estar dentro do carro. De quebra, custava tanto quanto carros bem melhores da concorrência.
• Renault Logan (2013) e Sandero (2014): nada de errado com o que mudou nesses modelos, como o estilo e o interior. O problema está no que ficou: motor 1,6 superado, ruídos e vibrações acima do normal hoje, câmbio e direção apenas razoáveis. Se no passado os romenos da Dacia nos enviaram um Logan antiquado na aparência, mas honesto ao volante, hoje eles desfrutam uma evolução técnica que não cruzou o Atlântico — e deveria.
• Toyota Corolla (2002): para um carro tão desinteressante na geração anterior, de 1998, o Corolla ficou bem atraente ao ser reprojetado. Só que o motor ficou áspero, o volante distante do motorista não tinha ajuste em distância e o câmbio automático não pensava duas vezes para reduzir marchas em aclives, levando giros e ruídos à estratosfera. Optar pela caixa manual não resolvia a questão — só mantinha a rotação alta todo o tempo, por ser curta demais.
• Volkswagen Fox (2003): como piorar um ótimo projeto como o Polo? Desloque os ocupantes para frente (deixando os pedais fora da posição ideal), eleve bancos e teto (será preciso endurecer muito a suspensão para manter a estabilidade) e simplifique ao extremo o interior, com direito a um quadro de instrumentos que ficaria perfeito na Kombi anos depois. Como cereja do bolo, crie uma versão “aventureira” pendurando o estepe na traseira, bem no caminho da bagagem.
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