Ai de você se não fizer o que manda o carro: será duramente punido com avisos insuportáveis
Se você gosta de mandar, não ser mandado, tampouco gosta que alguém fique lembrando o que você deve fazer ou não, dando aquelas ordens tolas e óbvias para motoristas escolados, talvez não seja uma boa comprar um desses carros de hoje. Está chato sentar-se ao volante, dar partida — ou antes mesmo de fazê-lo — e ser bombardeado por lembretes insistentes de todo tipo, gráficos, sonoros e até verbais.
O automóvel vem evoluindo gradativamente para se tornar mais um gadget, termo importado que usamos para as bugigangas eletrônicas que carregamos de lá para cá diariamente. Carro era uma coisa do universo puramente mecânico-elétrico. Tudo que funcionava ali tinha princípios meramente físicos e a sincronia era também mecânica, por correntes, correias, cabos e outras traquitanas.
Com a evolução da eletrônica, gradualmente foi sendo substituído o contato físico entre as coisas e o que chamamos de “sistema eletrônico” passou a fazer a mediação entre a vontade do motorista e a resposta das partes mecânicas. Foi assim com o carburador, com os cabos de acelerador e embreagem, a alavanca do freio de estacionamento, os cabos que acionam as funções do ar-condicionado e tantos outros. Novos e complexos mecanismos eliminaram alavancas e roldanas.
Gosto que a injeção calcule sozinha a mistura ar-combustível, mas me irrita quando o carro impõe condições para dar partida ou me pune com sinetas
Hoje tudo está mediado por sistemas eletrônicos e comandados por pequenos atuadores ou motores elétricos, gerenciados por um cérebro microprocessado com lógicas de algoritmo. É tão lindo quanto complexo. O problema começa quando a autonomia do motorista passa a ser subjugada por sistemas cada vez mais autocentrados.

Gosto de saber que o sistema de injeção calcula sozinho a mistura ar-combustível ideal, sem que eu me preocupe se estou colocando álcool ou gasolina no tanque, sem que eu puxe um afogador antes da partida (lembra?). Isso é maravilhoso. Mas me irrita quando o carro impõe condições para dar partida ou, se não obedeço a ordem, me pune com sinetas insuportáveis.
O Fiat 500 dispara uma sineta altíssima e irritante de cinco segundos assim que você liga a ignição, piscando freneticamente a luz-piloto do cinto. Se você ousar partir sem afivelar, ouvirá até o fim da viagem sinetas com três badalos a cada cinco segundos. Um inferno. E não é só o pequeno ítalo-mexicano — vários carros punem o motorista que decide não afivelar o cinto, nem que seja para manobrar o carro na garagem do prédio.
O Volkswagen Fox é incapaz de avisar se uma porta ficou mal fechada, mas experimente abrir uma frestinha do vidro com o ar-condicionado ligado… dá-lhe “conselho de economia”. Engate a marcha à ré e verá uma recomendação para “tomar cuidado com objetos atrás do carro”. Obrigado! Eu nem tinha notado o pipoqueiro logo ali… E no Toyota Corolla de cerca de 15 anos atrás, ao aplicar a ré, você ouvia uma sineta constante que parecia ser de um sensor de estacionamento, mas não era. Estava mais para uma empilhadeira de hipermercado.
Revisão imediata
Vencer o tempo ou a quilometragem da revisão fará disparar três sinetas e uma mensagem “Revisão imediata!” no painel, toda vez que der partida. E não adianta deixar a manutenção em dia fora da concessionária: você tem de informar o carro fazendo um procedimento oculto de apertar botões alternadamente por x segundos, típica coisa de iniciados.
A maioria dos carros com caixa manual de hoje “recomenda” o melhor momento para trocar de marcha. Fica acendendo luzes e setas no painel, dando puxões de orelha ecológicos se você estica demais ou exagera na carga. O Chevrolet Onix usa um motor jurássico, mas o motorista é que leva a culpa — afinal, dizem as luzinhas, o carro bebe demais porque você não muda de marcha na hora certa.
Num carro com transmissão automática ou automatizada que permita mudanças manuais, experimente fazer alguma manobra não prevista pelo engenheiro de programação: além de ser ignorado pelo próprio automóvel, você ainda pode receber um cartão-amarelo de “manobra não consentida” no painel, acompanhada de seis sinetas punitivas — e não reclame, pois eram 13 no primeiro Dualogic do Fiat Stilo.
Usam um motor jurássico, mas o motorista é que leva a culpa: segundo as luzinhas, o carro bebe demais porque você não muda de marcha na hora certa
Outra do Dualogic: ao desligar o motor deve-se engatar primeira ou ré para não ouvir a sineta, mas para dar nova partida você precisa voltar a ponto-morto ou… tome aviso sonoro. Em alguns carros, abra a porta com o farol ligado e será punido com sinetas. Desligue o motor sem puxar o freio de estacionamento e, sineta. Esqueça-se de colocar na posição “P” a transmissão ou de tirar a chave do contato e, sineta.
No Nissan Altima, até ao mudar de faixa sem acionar as luzes de direção você levava a advertência sonora. No Jeep Renegade o sensor de estacionamento dianteiro faz um festival de sinetas ao dirigir por lugares apertados, como em muitas rampas de acesso de edifícios. Não quer ouvir? Então desligue o sensor e corra o risco de chegar em casa com o para-choque ralado.
Se quiser guiar o carro de forma despachada, esportiva ou mesmo testar algo a seu bel-prazer, não lhe será mais permitido. Não quero aqui dizer que seremos boçais ao volante pondo em risco tudo e todos, mas estou no time que prefere comandar a ser comandado. Mesmo sistemas como controle eletrônico de tração e estabilidade, que podem salvar vidas, deveriam poder ser desativados — nem sempre são.
Os fabricantes dizem que os sistemas eletrônicos supostamente inteligentes tomam muitas decisões que aliviam o motorista, tornando a experiência de dirigir mais segura e despreocupada. E deveria ser assim. Mas o império das sinetas está cada vez mais tirânico e autoritário. Ao menos poderiam mudar os timbres das sinetas para torná-las mais afáveis aos ouvidos, já que os marmanjos maduros precisam de um carro que faz papel de mãe. Qualquer dia o carro briga com você porque não escovou os dentes ou esqueceu o casaco, vai por mim.
Coluna anteriorIlustração: Designed by Freepik sobre foto de divulgação
A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars