Para quem admira os pequenos automóveis, passar à escolha pela necessidade de espaço é uma lástima
Carro, em todos os aspectos, é também cultura. A gente que gosta sabe disso, porque esses grandes pedaços de lata deram asas à nossa liberdade e representam bem toda a evolução que tivemos nos últimos 100 anos. Os formatos de carroceria são, talvez, um dos mais claros indicativos dessa simbiose cultural e econômica.
Aqui no Brasil somos fãs das carrocerias do tipo hatchback, esses carros com dois volumes bem definidos — o volume da frente, onde se abriga o motor, e o volume onde está o habitáculo. Esse nome tem a ver com o termo inglês para escotilha (hatch), designando a porta traseira que se abre para cima, como uma escotilha de embarcação. É comum também serem chamados de três-portas ou cinco-portas, em alusão a tal escotilha.
Sempre fomos contumazes compradores de carros econômicos, razão de idiossincrasias como o VW Up ter sido esticado para um porta-malas maior
Eles são o tipo mais essencial de automóvel, que traz apenas o necessário em termos de espaço para locomoção. Disse acima que somos fãs, mas é certo que a preferência tem relação com outras coisas. Em nosso mercado, pelo menos nas últimas décadas, os hatches estão mais associados aos modelos de entrada, mais baratos. Na verdade, sempre fomos contumazes compradores de carros econômicos, devido a nosso baixo poder aquisitivo, e os hatches acabaram por ter de atender a um público bem vasto em tipo de utilização.
Daí a razão de algumas idiossincrasias nossas, como o Volkswagen Up ter sido esticado na traseira em relação ao modelo europeu, de modo a comportar um porta-malas que leve mais bagagens, e ter cintos de segurança para cinco pessoas, ante apenas quatro no alemão. Ou a mais estranha, na minha opinião: a segunda geração do Ford Ka, de 2007, que ganhou um apêndice na traseira para agraciar os pobres consumidores que precisam de um carro que seja de tudo, até cargueiro.
Particularmente os hatches são o meu tipo preferido. Pequenos, essenciais, econômicos quando se ocupa espaço na garagem ou nas vagas de rua. Fáceis de manobrar, dão a melhor noção de volume quando é necessário encaixar o carro naqueles espaços mínimos das grandes cidades. São carros muito demandados no Velho Continente, onde as cidades são antiquíssimas e se trafega por vielas que têm a largura de um Ford Landau. Escolha muito ligada à racionalidade espacial.
Pequeno intruso
Daí o homem se casa e tem um filho. As viagens familiares, antes restritas ao motorista e à passageira, passam a contar com um pequeno intruso, espaçoso. O serzinho, em si, ocupa pouco volume, mas exige uma tralha adjacente que torna qualquer ida ao sogro no domingo uma verdadeira expedição bandeirante. Daí, seus olhos automobilísticos que eram unicamente emocionais começam a tolerar outros julgamentos. É nessa hora que um camarada começa a piscar o olho para um Chevrolet Prisma, um Renault Logan, um Ka sedã… Começa a analisar abertura de porta, tamanho de porta-malas, se o movimento para colocar o bebê na cadeirinha é ergonômico ou não. É a fase do sedã.
Tem muita gente que adora sedã, sempre adorou. São vistosos, com aquele proeminente bumbum. Quando ultrapassam determinado comprimento, ficam elegantes, trazem um ar de respeito. São sempre ligados à família ou ao poder — um alto executivo nunca seria transportado em um hatch. Divirto-me pensando nesse aspecto sociocultural, mas para quem ama hatch ceder a um sedã é um sacrilégio, especialmente se você não tiver grana para comprar um sedã que seja dessa categoria do elegante.
O serzinho, em si, ocupa pouco volume, mas exige uma tralha adjacente que torna a ida ao sogro no domingo uma verdadeira expedição bandeirante
A questão é que, sempre que me vem à cabeça sedã básico, desses derivados de carros compactos, me lembro do horripilante Renault Clio sedã, cuja traseira parecia ter sido soldada a um Clio hatch vinda de um carro qualquer, ou do Peugeot 207 Passion, outro desastre estilístico. A maioria dos sedãs compactos tem esse desleixo proposital, para fazer o proprietário assinar o atestado público de carro barato. O Volkswagen Voyage é insosso. O Fiat Siena antigo era igualmente mal ajambrado. O Logan renasceu na nova geração, mas o primeiro exemplar tinha uma lateral que lembrava uma biga romana.
Enfim, nessa fase é que o homem começa a abandonar os preciosismos com carro e já nem liga se é legal ou não. Qualquer coisa vale, desde que caiba o carrinho no porta-malas e haja uma luz de cortesia na fileira de trás. Vi outro dia um idoso dirigindo um Volkswagen Gol GTI, daqueles quadrados, e pensei: “Depois de décadas dirigindo, esse voltou a pilotar, se livrou dos filhos e foi passear”. Quanta inveja.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars