Nossos automóveis nasceram para viver livres, estradas afora, não presos nos congestionamentos da cidade
Costumo ouvir que lugar de avião é voando. Que todo minuto que um avião passa em solo é prejuízo. É poético saber que alguma coisa foi pensada, concebida para viver em determinado ambiente, para sempre, e lá se realiza quando está vivendo a missão para a qual foi designada. Como sentir que um avião se alegra quando parte nuvens acima, degustando prazerosamente a imagem de seu perfil contra o sol, de asas longas deslizando pelo ar como se o peso de uma pena tivesse.
O mesmo regozijo eu sinto quando vejo nossos carros deslizando pelas estradas. Estrada, sim, é lugar de carro. Não cidade. Sinto pena dos automóveis quando os vejo parados aos montes nas filas dos semáforos, nas avenidas que não fluem, pagando seus pecados com suas marchas-lentas compassivas, pacientes, tendo que ativar freneticamente seu ventilador de arrefecimento para aplacar o calor excessivo, gerado por um coração que parece bater para pulsar em artérias entupidas. Sinto dó, pois não há nada mais inútil que um motor ligado parado, gastando energia sem produzir trabalho algum.
O auge do êxtase de um carro feliz que desliza em uma estrada é a hora de ultrapassar: é a hora de brincar, de jogar, de provar a si e aos outros as próprias capacidades
Quando ando pelas amplas estradas com meu automóvel, sinto-o totalmente diferente. É nítido que ele fica mais alegre, que o motor gira macio, do jeito que gosta, em rotação fixa e alta, como um moleque que põe a cabeça para fora da janela com o carro em marcha e fica gritando aaaaaaaaaah! para os transeuntes, expressando todo seu desejo de liberdade. Não naquele sobe-desce do tráfego urbano, não! O vento desliza macio sobre o perfil do capô e do para-brisa e o menino fica alegre em provar para si que é capaz de vencer a resistência do ar, como que provasse a si que é capaz. Sim, ali é seu lugar!
Pela minha cabeça passam as cenas de todos os profissionais que pensaram naquilo, os engenheiros, os projetistas. Sobre uma prancheta, pensando num desenho que fosse emocional, mas ao mesmo tempo entregasse todas as exigências de algo que usa por si as mais diversas leis naturais da física, a mecânica à aerodinâmica. Eles que desejaram ter o vento no rosto, eles que quiseram ter força no pé direito para avançar estrada afora a 100, 120 km/h vendo passar as campinas, enquanto as mãos repousam num volante, com a tranquilidade de ter nas mãos um companheiro com quem contar, escutando um rádio, tendo ao lado a companhia de quem se gosta.
Carros irritam-se na cidade. São obrigados a circular em temperatura anormal de funcionamento logo que acordam — alguns, pobrezinhos, enfrentam íngremes rampas de garagem logo nos primeiros segundos, o lubrificante ainda espesso. Ficam todo o tempo com o motor sendo provocado pelo pé direito, gastando embreagem como um corredor que fica gastando a sola do sapato de um lado só por pisar torto. Têm que respirar um ar ruim, engasgam, ficam entupidos.
A cidade os adoece, como a nós. A estrada, não. Veja que os carros que rodam apenas em estrada são mais saudáveis, suas peças duram mais, exigem menos manutenção. Carros são mais felizes vivendo em estradas, porque foram feitos para elas. E mais: carros projetados para estradas são mais bonitos, como os grandes sedãs com seus perfis baixos e linhas mais esguias. Carros urbanos são como pequenos pintainhos que nascem para viver confinados, disputando espaço com outros milhares.
O auge do êxtase de um carro feliz que desliza em uma estrada, realizando sua missão de correr livre por aí, é quando chega a hora de ultrapassar um carro ou caminhão mais lento. É a hora de brincar, de jogar, de provar a si e aos outros as próprias capacidades. Quando o motorista pisa na embreagem, reduz uma ou duas marchas e aperta com força o acelerador em uma retomada.
Daí o motor-coração despeja todo seu vigor sobre as rodas e avança, fazendo os ocupantes grudarem as costas contra os bancos por um breve momento, lembrando-se que todos os corpos materiais têm inércia. A rotação sobe até o limite do fôlego, até que a manobra é finda e o condutor pode aliviar o pé, passando uma marcha mais longa. Todos respiram aliviados, enquanto o carro sente-se feliz, capaz, orgulhoso. Avançará impetuoso, certo de si, até a próxima carreta quando recomeçará a divertida brincadeira.
O motorista que ama seu carro deve levá-lo à estrada sempre, o quanto possível. Lá ele se sentirá como o avião quando guarda o trem de pouso e pode partir feliz pelo imenso céu, cumprindo a missão para a qual o criaram, até que a idade ou os quilômetros acumulados n hodômetro, por fim, determinem que sua hora chegou. Ao menos — e ao contrário de seus donos —, na derradeira hora e se tiverem alguma sorte, eles poderão ser restaurados e assim reviver, provando que são seres superiores e muito mais livres que nós.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars