As marcas, a publicidade e o suicídio da ética

Exemplos como os da Ford e Hyundai indicam que as
fábricas querem espaço em nossa mente, mas a que custo?

 

As propagandas de carros estão mesmo surpreendendo nas últimas semanas — negativamente, o que é uma pena. Como já exemplificou o Best Cars no Editorial do dia 5 de abril, a indústria é repleta de exemplos criativos, adequados, bem-humorados. Mas é cada vez mais comum aparecerem más iniciativas que despertam os piores sentimentos em quem acompanha com interesse o fascinante mundo das marcas de automóveis.

Não pode ser normal aceitar que qualquer coisa seja usada como linha criativa da publicidade. É um fato que a genialidade reside em uma linha muito tênue entre o brilho e a loucura total — e, no vasto mundo da criatividade publicitária, surge todo tipo de coisa na prancheta dos profissionais que precisam tirar dez, vinte coelhos por dia das cartolas. É preciso surpreender. É preciso destacar-se num universo caótico e repleto de mensagens. A que custo?

Veja-se o caso da péssima propaganda da Hyundai no Reino Unido, que mostra um homem tentando cometer o suicídio pela inalação dos gases de escapamento de seu IX35 dentro da garagem. O objetivo não é atingido porque se trata de um carro com pilha a combustível, que consome hidrogênio e emite apenas vapor d’água, sem poluentes.

 

Como a Hyundai, a Ford agiu como se fosse um ente externo, apartado do processo, delegando à agência de propaganda toda a responsabilidade

 

Essa publicidade que aborda o automóvel como arma letal e a tentativa de suicídio como algo trivial é apenas mais um exemplo. No entanto, o que eu gostaria de abordar não é o trabalho dos profissionais criativos das agências, mas a ética e os valores que estão escondidos no conjunto mercadológico, sobretudo por trás das marcas que pedem perdão eximindo-se, de forma dissimulada, dos resultados.

Há pouco tempo a Ford da Índia desculpou-se por uma série de anúncios impressos que teriam vazado sem autorização da agência de publicidade. As peças tinham ilustrações caricatas de um Ford Figo — versão indiana reestilizada do Fiesta da geração passada — com personagens públicos ao volante gabando-se do grande porta-malas do carro. Ali estavam amarrados e amordaçados alguns dos inimigos dos motoristas Silvio Berlusconi, Michael Schumacher e Paris Hilton.

A marca desculpou-se publicamente dizendo que aquilo não representava seus valores e que os culpados seriam punidos. Ora, ora… Como a Hyundai, a Ford agiu como se fosse um ente externo, apartado do processo, delegando à agência de propaganda toda a responsabilidade pelo ocorrido e dando a entender, em seu discurso, que a agência goza de uma independência criativa tamanha que é capaz até de prejudicar sua reputação sem que tenha controle sobre isso. Nós sabemos que não é verdade.

 

 

Mente perturbada?

O processo de criação de uma peça publicitária começa muito antes. O produto tem um posicionamento de mercado. A linha criativa que será adotada é definida após uma série de estudos que levam em conta o público que será abordado, os resultados que se pretendem buscar, a verba disponível. Não é, em absoluto, algo casual e que surge no “insight genial” de uma mente perturbada numa sala da agência de propaganda.

As peças que vazaram eram artes finais, com ilustrações ricas em detalhes e que não custam pouco. Se fossem peças num estágio inicial, que ainda estivessem sujeitas à aprovação por estarem numa etapa incipiente da criação — como as justificativas da Ford dão a entender —-, seriam rascunhos a lápis, esboços. Para estarem no estágio de arte final, foram devidamente liberadas pelo departamento de marketing da companhia, que aprovou o investimento nos artistas que finalizaram a ilustração e autorizou o avanço.

 

Os pedidos de desculpas acabam tornando-se frequentes e vazios, causando uma dicotomia no discurso das empresas, que se proclamam éticas

 

O vazamento das peças, com a consequente reprovação pela opinião pública, apenas antecipou o pedido de desculpas — o que, no caso da Hyundai, ocorreu com a peça já publicada. Se não tivessem vazado antes, as peças do Figo seriam divulgadas. Portanto, a Ford teve sorte em poder culpar a agência dessa vez.

Tanto a Ford como tantas outras marcas estão sucumbindo à pressão por atenção, por espaço, por holofotes, como fez a Mercedes-Benz brasileira ao se expor ao ridículo com seu novo Classe A e o viral do funk. Ao mesmo tempo em que protagonizam um mundo com excesso de imagens, movido pela lógica do consumo e das massas, as marcas tornam-se vítimas dele. Os pedidos de desculpas acabam tornando-se frequentes e vazios, causando uma dicotomia no discurso das empresas, que se proclamam éticas e comprometidas, mas não se negam a aceitar o mau gosto e a execração se isso for necessário.

Se houvesse, de fato, uma preocupação com a ética, ela permearia todo o processo de criação e gestão dos canais pelos quais a marca se relaciona com seus públicos, da forma com que o produto é concebido até a hora em que o anúncio é solicitado à agência. Qualquer pessoa comum consegue imaginar mil formas criativas para propagandear um produto tão especial e diferenciado quanto um carro movido a hidrogênio, menos a própria Hyundai. Isso é um sinal claro de que a ética se suicidou lá atrás, quando toda essa lógica começou.

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