Como os processadores eletrônicos ajudam na pilotagem com sistemas como freios ABS e controles de tração e de empinada
Se alguém falasse em freios com sistema antitravamento (ABS) e controle de tração para motos nos anos 80, seria chamado de “marica” ou “braço duro”. Piloto de moto sempre foi um cabra macho da mais alta cepa, que jamais aceitaria um componente que lhe dissesse onde, como e quando frear e acelerar. Coisa de frouxo mesmo!
Passados 30 anos, muitos desses heróis trazem enormes cicatrizes, pinos de platina e parafusos de aço dentro e fora do corpo para lembrar como é dolorido ser machão. Hoje a tecnologia chegou com tudo às motos — para a felicidade de pilotos e a preservação da epiderme. E não tem nada de frescura nisso: chegou para evitar tombos cinematográficos (que só agradam a quem está filmando ou assistindo depois no Youtube) e, sobretudo, para salvar vidas. Sim, porque tudo que nasce nas competições uma hora acaba nos veículos de uso “normal”.
Recentemente tive a chance de avaliar duas superesportivas que trazem muita eletrônica embarcada: a Ducati Panigale 1299 e a nova Kawasaki ZX-10R, que duelam diretamente no Mundial de Superbike há anos. Mais recente, a Kawasaki veio com um pacote mais completo de auxílios eletrônicos — tudo de última geração —, que vale a pena conhecer.
O ABS nasceu nos trens, foi para os aviões, desceu para os carros e finalmente chegou às motos nos anos 80 pela BMW
• Controle de tração – Derrapar é divertido, sim, mas até certo ponto e para quem está acostumado. Para quem não tem experiência, sentir a traseira indo para o lado em vez de ir para frente é motivo de enfarte. Hoje as motos superesportivas contam com programas eletrônicos que podem controlar o quanto o piloto quer de limitação de potência na roda motriz para evitar a perda de tração.

Geralmente esses programas são divididos em três ou quatro níveis, desde o modo Rain (para chuva), que limita ao máximo a entrada de potência e elimina qualquer vestígio de derrapada, até o Sport ou Slick (referente aos pneus lisos de competição), dependendo da marca, que libera integralmente a potência. O limitador passa a ser o punho direito do piloto. Por isso, mesmo os mais puristas podem, sim, optar por nenhum controle eletrônico e cuidar da própria integridade física — o tal do livre arbítrio tão divulgado pela Bíblia.
• Controle de empinada – Pois é, até isso! Hoje sabemos que o maior limitador de potência das motos não é a tecnologia nem o desenvolvimento dos pneus: na verdade, o que impede as motos de serem muito mais potentes é sua própria natureza. São veículos leves e apoiados apenas em dois pedaços bem pequenos de borracha em contato com o solo. E uma das dificuldades de entregar a potência é que a tração é exclusiva na roda traseira. Quando o piloto acelera de uma vez, ou a traseira derrapa (se o pneu não for largo ou aderente o bastante) ou a frente empina, por ser leve. Os mesmos processadores que controlam a derrapagem da roda traseira impedem que a frente levante além de uma certa altura.
• Freios antitravamento – O velho e conhecido ABS. Como se sabe ele nasceu nos trens, depois foi para os aviões, desceu para os carros e finalmente chegou às motos, ainda no início dos anos 80, pela BMW. Os primeiros sistemas eram muito simples porque não passavam de um ABS de carro. As últimas gerações de ABS conseguem “pensar” a uma velocidade muito maior e identificar a posição da moto em relação aos eixos vertical e horizontal. Além disso os freios passaram a ser combinados (dianteiro e traseiro acionados em conjunto) e trocam informações entre si.
• Suspensão com controle eletrônico – Imagine uma suspensão que se autoajusta de acordo com a velocidade, inclinação da moto ou tipo de piso. Isso já existe e também trabalha com sensores que identificam a velocidade e a profundidade do “mergulho” da moto em uma frenagem, por exemplo, para controlar a passagem de óleo e evitar o afundamento da frente. Algumas motos fora de estrada têm amortecedores capazes de entender que a moto está no ar, durante um salto, e já se preparar para a aterrissagem.
Como funcionam
Basicamente, tudo isso é muito simples: trata-se de um processador de dados muito veloz aliado a um acelerômetro ou medidor de g. Esse acelerômetro está presente em muitos produtos eletrônicos hoje em dia, como telefones celulares inteligentes, e nada mais é que uma “bolha” de mercúrio sobre uma placa processadora. Sabe aquele nível que os pedreiros usam para fazer a parede alinhada? É um pedaço de metal ou madeira com um círculo cheio de líquido e uma bolha de ar. À medida que o pedreiro inclina essa régua, a bolha se desloca até encontrar o meio. Pois o acelerômetro segue esse mesmo princípio, mas é digital e muito preciso.
Esse acelerômetro mede seis parâmetros de deslocamento da moto: para frente e para trás no sentido longitudinal (horizontal), para os lados esquerdo e direito (vertical) e a soma desses dois vetores, que seria a diagonal. Com essas informações a central eletrônica sabe se a moto está inclinada, freando, acelerando, empinando ou desgarrando feito louca. De acordo com a situação ela manda mais ação para o freio dianteiro ou traseiro — pouco importa a vontade do piloto — para evitar o travamento das rodas mesmo com a moto muito inclinada.
Nas primeiras motos com controles eletrônicos o piloto podia sentir os sistemas atuando, mas hoje eles atuam de forma muito sutil
Antes desses processadores, quando o piloto “alicatava” o freio dianteiro no meio da curva acontecia o fenômeno conhecido como stand up, ou seja, a moto levantava e assim tendia a seguir em linha reta (a moto precisa da inclinação para fazer a curva, como já percebeu qualquer piloto cujo assustado garupa tentou compensar essa inclinação movendo o corpo na direção oposta). Hoje a eletrônica entende que a moto está inclinada e, mesmo que o piloto acione o freio dianteiro com força, a ação se transfere para a roda traseira evitando o fenômeno.

O controle de tração seria o inverso do ABS: eles usam os mesmos medidores de velocidade das rodas, mas quando o sensor percebe que a roda traseira está girando mais do que deveria, manda um aviso para a central eletrônica reduzir a quantidade de combustível nos bicos injetores. Sem comida os cavalos perdem força e a tração é recuperada.
Idem para o controle de empinada. O medidor de g sente que a roda dianteira começou a levantar e manda cortar o combustível até tudo voltar ao normal. Nas motos com diferentes módulos de controle pode-se escolher o quanto permitir que a roda dianteira levante. Fiz essa experiência com a Panigale 1299 em Mugello, Itália: é difícil acostumar com a ideia de que a frente se manterá a 10 centímetros do chão sem jogar o piloto para trás, mas é o que acontece. Esse sistema já existe nas motos de corrida e pode ser desligado — por isso os pilotos conseguem empinar depois da bandeirada.
Uma das maiores conquistas desses sistemas foi a velocidade de processamento. Nas primeiras motos com controles eletrônicos o piloto podia sentir os sistemas atuando, chegando a ser surpreendidos porque era como se, de repente, o motor começasse a falhar. Hoje esses controles atuam de forma muito sutil e o piloto já nem percebe a ação.
Que me perdoem os jurássicos motociclistas que são contra esses sistemas eletrônicos: eles tornam as motos muito mais perdoáveis e ajudam a apurar a pilotagem. Nenhum piloto fica melhor ou pior graças à eletrônica. Isso é uma bobagem, porque o que faz um piloto vencer uma corrida é frear mais tarde e acelerar mais cedo — e isso depende de cada um e não de um cérebro eletrônico.
Coluna anteriorGeraldo Tite Simões é jornalista e instrutor de pilotagem dos cursos Abtrans e Speed Master
A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars