Há uma surpreendente relação entre esses três elementos quando cada um só busca o que é melhor para si mesmo
Peço desculpas pelo tema, porque falar de cocô é um tabu, apesar de ele fazer parte de nossas vidas do nascimento até a morte. É um assunto muito pessoal: cada um cuida do seu — ou melhor, do seu e dos de seus animais de estimação. E aqui começa a relação entre cocô, trânsito e política.
Moro no mesmo endereço há 45 anos. No começo era um bairro tranquilo, afastado do centro de São Paulo e com poucos habitantes. Hoje faz parte da superpopulosa zona sul, que cresceu de forma exponencial, sem planejamento. Não existem mais áreas verdes, parques, campos de futebol — virou tudo casa, calçada e asfalto. E quase todos os dias encontro cocô de cachorro na calçada, em frente ao portão, ou cocô de gato na garagem, no carpete ou no jardim. Só que eu não tenho gato, nem cachorro.
O motociclista que roda a 90 km/h no corredor ou usa escapamento aberto coloca nos outros a importância do cocô do cachorro
O mundo mudou muito em 45 anos, algumas coisas para melhor, como a medicina, a eletrônica e a tecnologia; outras para pior, como a educação do ser social. Em pleno século 21, ainda tem gente que vive como na Idade Média. Naquela época não havia banheiro nas casas. Usava-se penico: os moradores faziam as necessidades, iam até a janela e jogavam na calçada. Imagine cidades como Paris e Roma com montanhas de fezes e urina nas ruas. Isso provocava um mau cheiro, chamado na época de mal aire, palavra que deu origem ao nome da doença malária.
Passaram-se 1.500 anos e as grandes cidades ganharam redes de esgoto, mas ainda tem gente que joga cocô nas ruas como se vivesse no século 5.
Doença social
Tem nome: chama-se sociopatia. O sociopata é um doente, mas como a maioria dos doentes comportamentais ele não sabe — ou acha que doentes são os outros. O sujeito que deixa o cocô do cachorro na porta da casa de alguém acha que esse alguém é menos importante do que meio quilo de cocô.
Se ele age assim, pode até ser que no ambiente de trabalho seja um chefe exemplar, um funcionário dedicado, mas duvido. Essa falta de educação social se reflete em todo relacionamento — e fica muito evidente no trânsito. O pai ou mãe que para em fila dupla na porta da escola está pouco se lixando para os outros. É uma pessoa para a qual os demais valem menos que o cocô de cachorro. O motociclista que roda a 90 km/h no corredor entre os carros, tocando a buzina ou acelerando com escapamento aberto, é outro que coloca nos outros a importância do cocô do cachorro. Idem o pedestre que atravessa por baixo de uma passarela, construída para salvar a vida dele.
Aí está a grande dificuldade em trabalhar com mobilidade urbana: cada um quer fazer apenas o que é melhor para si, sem dar a mínima para os outros. Ora, os outros — para eles deixam o cocô do cachorro. Por isso é tão difícil tratar do assunto “educação de trânsito” quando o público já não tem nem a educação mais elementar.
E a política?
Uma organização social é pautada em leis. E quanto mais insensata for uma população, mais leis serão necessárias, porque onde impera a sociopatia quem faz o papel de educador social é a polícia. Em uma sociedade avançada o papel de educador social é feito pela família, que passa conceitos como generosidade, respeito e altruísmo de pai para filho como se fossem uma carga genética.

Aqui começa o descontrole de países socialmente atrasados. Quem cria e aprova as leis são os políticos eleitos pela população (se for uma democracia), de vereadores ao presidente da república. E quem são essas pessoas? São pessoas comuns, de um cientista político, escritor de teses sobre sociedade, a um sujeito que leva o cachorro para passear e deixa o cocô na porta da casa do vizinho.
Políticos não vêm de Marte, não são entidades sobrenaturais: são pessoas comuns, que podem ser talhadas para a vida pública ou apenas o ex-participante de um Big Brother da vida. Porque quem elege também pode ser alguém engajado com as questões sociais ou um sociopata que estaciona em fila dupla.
Como se vê, tudo gira em torno do ser social e, quando esse ser está doente, toda a sociedade adoece junto. E é por isso que às vezes é aprovado um projeto de lei maluco, que dificultará muito sua vida: quem criou e quem aprovou são pessoas doentes, que pensam primeiro em si ou em sua corporação e não na maioria.
O mais estranho é que as relações pessoais regrediram na medida direta da evolução tecnológica. Quanto mais as pessoas se comunicam e se expõem pela internet nas redes sociais, tentando passar uma imagem de descolado e antenado, mais vemos casos de pancadões madrugada adentro, motos com escapamento direto e motoristas que desprezam os sinais de trânsito.
Enquanto os povos primitivos precisavam viver em sociedade para a sobrevivência, hoje parece que as pessoas veem nisso uma penitência
Existe uma preocupação evidente de se mostrar um caráter público, mas se pratica outro tipo de comportamento — geralmente pior — no mundo social. Talvez o ser humano tenha desaprendido a viver em sociedade. Enquanto os povos primitivos precisavam disso para a sobrevivência, hoje parece que as pessoas vivem em sociedade como forma de penitência: “Eu sou obrigado a aguentar esse vizinho, mas minha vontade era matar esse desgraçado”. Ou, “fui obrigado a parar porque esse miserável freou no sinal amarelo ou deu passagem a um pedestre na faixa”.
Nossa pena maior é saber que essa tendência de incentivar e valorizar o indivíduo acima do social não tem perspectiva de regressão — nem é regional. Ela atinge as sociedades modernas de forma endêmica, sem distinguir religião, etnia, posição social, localização geográfica. Sim, há sociedades em que a tendência é menos evidente, mas faça uma pesquisa no Youtube e repare que os filmes com situações constrangedoras ou acidentes superam em muito as visualizações de filmes com qualidades humanas dignificantes.
Como melhorar os índices de acidente de trânsito se o principal agente modificador está piorando? Palestra com o espanhol Jesus Gonzalez, da Fundación Mapfre, apontou que o fator mais contribuinte para o acidente de trânsito é o comportamento, com 75%. Só entre motociclistas, passa a 90%.
Segundo o especialista, enorme redução de acidentes na Espanha veio de uma soma de medidas, iniciada pela educação, seguida por 144 medidas de ordem técnica e comportamental. Em suma, não existe uma solução milagrosa — como a redução pura e simples da velocidade nas vias —, mas inúmeras medidas elaboradas em conjunto com vários setores da sociedade. Uma delas é incentivar as empresas a incluir no desenvolvimento do profissional, como ferramenta de recurso humano, a disciplina Comportamento no Trânsito, que inclui desde pedestres e ciclistas até motociclistas, motoristas e caminhoneiros.
Para que isso dê resultado, o elemento chave ainda é o ser humano. Mas, enquanto tivermos na sociedade um número cada vez maior de gente que trata o outro como se fosse apenas uma calçada suja de cocô, não há esperança.
Nota: Os números de acidentes com vítimas caíram nos últimos dois anos no Brasil. Alguém poderia acreditar que foi reflexo de medidas técnicas, como a redução de limites de velocidade. Na verdade, foi efeito colateral da crise: muitos brasileiros trocaram o carro pelo transporte público ou reduziram seu uso. Quando mal interpretada, a estatística é uma ficção matemática.
Coluna anteriorGeraldo Tite Simões é jornalista e instrutor de pilotagem dos cursos Abtrans e Speed Master
A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars