Rodar com modelos históricos, tão menos confiáveis, muitas vezes
traz emoções bem diversas daquelas sentidas ao volante
Há cerca de dois anos fui agraciado com uma das oportunidades mais legais que um apaixonado por carros pode receber: um convite para escrever mensalmente sobre automóveis antigos, numa revista especializada de grande circulação. A incansável busca por antigos nacionais e importados expandiu meu leque de amizades, lugares visitados e noções básicas de mecânica de automóveis.
Não é fácil conciliar essa atividade com minha agenda familiar e profissional, mas tento destinar um fim de semana por mês para visitar colecionadores em São Paulo, quase sempre aos domingos. Um acervo rico e bem cuidado geralmente pertence a pessoas ocupadas com grandes responsabilidades, de tal forma que as simples recepção e atenção já consistem em um enorme privilégio.
Melhor não desperdiçar o tempo do anfitrião: após a escolha do “modelo”, poucos são aqueles que não se animam a me levar para uma volta. E não se trata de uma voltinha no quarteirão, pois quem tem carro antigo sabe que motor não se liga à toa: é no mínimo uma esticadinha ao litoral ou a alguma cidadezinha próxima, um simples bate-volta para ouvir e sentir o carro. Um programa ideal para domingos ensolarados…
Tudo começa com o aquecimento: afogador puxado, dá-se a partida e, se tudo correr bem, aguarda-se alguns minutos em marcha-lenta para que todos os componentes e fluidos atinjam a temperatura ideal. Neste momento consigo imaginar a dilatação dos anéis, a estabilização da pressão de óleo (muitas vezes monoviscoso) e a condensação de mistura lentamente evaporando no trato de admissão.
Nas palavras do querido Mahar, “a graça é ir
muito longe com eles pra ver a caca que dá: quando
funcionam muito bem não tem graça nenhuma”
Enquanto o motor não esquenta, vamos tomando um café e montando o “kit de primeiros socorros”: alguns metros de arame (o quebra-galho universal), duas correias, algumas mangueiras, bobina, platinado, condensador, tampa do distribuidor, jogo de velas, reparo de bomba de combustível, rolo de fita isolante, fusíveis de diversas amperagens e o item mais importante de todos: um recipiente de cinco litros cheio d’água.
Sabe como é: só por precaução…
Nas palavras do querido José Rezende Mahar: “São carros que bebem muito, difíceis de restaurar, que funcionam às vezes problematicamente, e a única graça que tem é ir muito longe com eles pra ver a caca que dá. Aí fica divertido, porque quando funcionam muito bem não tem graça nenhuma: o negócio é quando quebra, dá problema. É uma forma refinada de masoquismo”.
Não posso afirmar que seja a regra, mas passei por momentos curiosos. Como o de um Ford LTD que rodou até certo ponto e depois voltou guinchado, após apresentar um princípio de incêndio causado por uma bomba de combustível com o diafragma rompido. Platinado desregulado ou com os contatos gastos é figurinha carimbada nos antigos, quase sempre fazendo par com um condensador no fim de sua vida útil.
Carburador e linha de combustível são outras fontes de problemas: por mais cuidadoso que seja o motorista, sempre fica nas cubas um resto de gasolina, que envelhece e se transforma naquela pasta gelatinosa que fatalmente entupirá todas as passagens que encontrar pela frente. As mangueiras também começam a se dissolver por dentro, entupindo o filtro de combustível em poucos quilômetros — e assim parou o Chevette.
O induzido do dínamo é outra pecinha que volta e meia estraga muitos passeios: sempre queima sem aviso e, quando isso ocorre, a carga da bateria vai para o espaço. Algumas vezes o sistema elétrico vai e volta sem apresentar problema algum, mas aí quem cisma de entrar em greve é o bêndix do motor de arranque: por falta de limpeza e lubrificação ele decide travar e só volta ao batente depois de algumas pauladas gentis, como aconteceu com um utilitário militar (desculpe-me o leitor, mas a amizade que surgiu desses contatos me impede de ser mais detalhado).
“Essa oscilação é normal”
Às vezes tudo anda às mil maravilhas até que você decida pisar no freio de repente, sem guardar aquela distância de segurança do veículo à frente: o pedal simplesmente afunda até o assoalho, sem lhe dar satisfação alguma. Quem prega essa peça são os pobres retentores de outras épocas, que não dão conta de estancar o fluido em seu devido lugar: ele acaba escapando no chão da garagem ou em algum lugar do pavimento. Que o diga um charmoso cupê alemão.
Mesmo que tudo esteja em ordem no circuito hidráulico, há os desagradáveis e perigosos desvios de trajetória durante a frenagem: a direção que insiste em puxar com violência para um dos lados é claro indício de lonas de freio mal ajustadas. Ou pior: alguém foi lubrificar o chassi e exagerou tanto na dose que acabou por contaminar os tambores com graxa, como ocorreu com um Lincoln Continental. Melhor não rir, pois é mais comum do que se pensa.
Em outra ocasião estávamos a cerca de 160 km/h quando o marcador de temperatura deu aquela oscilada rápida, mas sem chegar ao fim da escala. “Não se preocupe”, disse o proprietário do bólido, “essa oscilação é normal, a não ser que seja apenas vapor no sistema”. Dito e feito: uma mangueira abriu o bico e lentamente esvaiu o líquido de arrefecimento do Chevrolet nacional.
O fato é que, além do avanço tecnológico
substancial, houve também nas últimas décadas
um inegável ganho em confiabilidade
Neste último caso deu até pena, pois o óleo pingava entre o bloco e o cabeçote, indicando uma possível queima de junta: foi só trocar a mangueira e completar o radiador para perceber a fumaceira branca que saía pelo escapamento. Pior do que isso, só mesmo quando ocorreu uma quebra de diferencial, provocada por um “inocente tranco” para dar a partida: ficou bem mais caro do que revisar o sistema elétrico, pois era um carro exótico, único no Brasil.
Essas experiências foram vividas com carros de várias épocas e de inúmeros fabricantes, então não há o que se falar em “isso é problema da marca tal”. O fato é que, além do avanço tecnológico substancial, houve também nas últimas décadas um inegável ganho em confiabilidade, pouco importando se o carro é alemão, japonês, francês, italiano ou mesmo chinês. Os “antigos mais jovens” (de 20 a 30 anos) deram um verdadeiro salto nesse sentido.
Basta andar num carro da década de 1980, quando a ignição eletrônica fulminou o platinado: além de não se ficar mais parado no meio da estrada, há a inegável vantagem de explorar rotações mais altas, inimagináveis para os anos 60 e 70 com o emprego do tradicional sistema Delco. Tudo melhorou quando o ponto de ignição passou a ser comandado por sensores. Por fim, a ignição estática suplantou o distribuidor.
Por sua vez, a década de 1990 consagrou o emprego da injeção eletrônica: os primeiros sistemas sofreram com interferências eletromagnéticas e danos aos injetores por abrasão e ação corrosiva, mas boa parte desses problemas já faz parte do passado. Novos materiais e geometrias de atomização mais eficientes reduziram a manutenção do sistema a um mínimo, com uma regularidade de funcionamento jamais vista no tempo dos carburadores.
Os antigomobilistas do futuro sabem que há cada vez menos espaço para o graxeiro amador: hoje basta calibrar os pneus, verificar óleo, combustível e cair na estrada, até porque não há muito a ser feito diante daquela carenagem que recobre os motores. Restou apenas a troca de pastilhas de freio, que ainda pode ser realizada no quintal de casa ou na garagem dos condomínios (e não é preciso regular mais nada…).
Mas quem procura acha: outro dia desses, curtindo o marasmo de um Toyota Corolla com apenas 13 anos de uso, me deparei com uma estranha trepidação nas arrancadas e retomadas. Verifiquei e descobri que o problema estava na junta deslizante tripoide, logo na saída da transmissão: dei um sorriso de orelha a orelha, pois a “trizeta” era uma velha conhecida dos tempos em que eu mexia no saudoso Ford Corcel II da minha esposa.
Não é aquele problemão, mas já é um problema: tal qual um hipocondríaco automotivo, a diversão agora é sair em busca de problemas que não existem, pois já não é possível ”ir muito longe para ver a caca que dá”. Por essas e outras que aguardo ansioso por uma folga nas buchas da delicada suspensão traseira independente do sedã nipo-brasileiro.
Sabe como é: só por precaução…
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