Há 60 anos, um minicarro italiano de uma porta e motor de moto tornava-se o primeiro automóvel feito no Brasil
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação, salvo quando indicado
No início da década de 1950 o italiano Renzo Rivolta dirigia a Iso, fabricante de refrigeradores, motocicletas e da motoneta de mesmo nome — concorrente da Vespa e da Lambretta — com motores a dois tempos de 125 a 250 cm³ na cidade de Bresso, nas cercanias de Milão. Naquele período de reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial, muitos não podiam adquirir ou manter um automóvel. Rivolta então percebeu o espaço para um carro bem pequeno e econômico, algo no caminho entre uma moto e um Fiat Topolino.
Coube ao engenheiro aeronáutico Ermenegildo Preti e seu assistente Pierluigi Raggi, também italianos, desenvolver um curioso minicarro em forma de ovo, com uma só porta frontal e motor na lateral traseira. Embora fosse fácil associar a porta à das geladeiras da Iso, a solução vinha de aviões cargueiros. Apresentado o estudo a Rivolta, decidiu-se levar adiante a ideia e, em 1952, estava pronto o primeiro protótipo com dois lugares, duas rodas dianteiras e uma só atrás — solução que logo deu lugar a duas rodas posteriores com uma estreita bitola, mais segura em caso de furo ou estouro de pneu.
Exposto ao público no Salão de Turim de 1953, o pequeno automóvel causou curiosidade. Seu nome era um diminutivo da marca — Isetta —, mas a forma arredondada lhe rendeu o apelido de bubble car ou carro-bolha, que mais tarde se estenderia a outros modelos do segmento. No mesmo ano ele chegava às ruas.
O Isetta original da italiana Iso: uma porta, 2,3 metros, consumo “como de um scooter”
Com chassi tubular e carroceria de aço, o Isetta media apenas 2,3 metros de comprimento por 1,4 metro de largura, o que possibilitava estacionar de frente em vagas onde outros carros paravam de lado. A bitola traseira de só meio metro, menos da metade da dianteira (1,20 m), conferia aparência ainda mais estranha. Com motor de motocicleta, pesava 330 kg e as rodas mediam 10 polegadas de aro.
Havia pouca potência, mas por sua economia (26,7 km/l em média) o Isetta parecia bem adequado às condições da Europa em recuperação da guerra
A transmissão à traseira usava corrente e, com as rodas motrizes tão próximas, não era preciso diferencial. Isso lhe conferia vantagem em tração, pois bastava a aderência de um dos pneus ao solo para manter o carro em movimento. Em contrapartida, seria conhecido como “papa-buraco” pela dificuldade em evitar que uma das rodas caísse em um deles, pois cada uma descrevia um trajeto — contudo, a ligação rígida entre as traseiras amenizava o impacto de uma roda se a outra fosse desviada do buraco.
A porta única era praticamente toda a frente do veículo, englobando o para-brisa, seu limpador também único, o painel formado apenas pelo velocímetro e o volante — que se deslocava para fora junto da porta, articulado por uma junta universal. Pequenos faróis circulares a ladeavam. As janelas laterais e a traseira eram fixas (para ventilação havia apenas quebra-ventos) e de acrílico, sendo usado vidro só no para-brisa. O teto de tecido podia ser recolhido, para ventilar ou encher de sol o compacto interior, e servia para saída ou socorro em caso de colisão, que facilmente bloquearia a operação da porta.
No Iso o motor era de 236 cm³ e 9,5 cv; o volante acompanhava a porta, com coluna de direção articulada; teto corrediço era opção de saída em emergências
Montado no lado direito da traseira em posição transversal, o motor previsto era o da moto Iso 200, de um cilindro a dois tempos com arrefecimento a ar, 198 cm³ e potência de 8 cv, mas antes do lançamento a empresa optou por uma unidade maior. Com dois cilindros geminados (câmara de combustão única para ambos, conceito também conhecido como “cilindro em U”), um deles com curso pouco maior que o do outro, deslocava 236 cm³ e desenvolvia 9,5 cv, transmitidos a uma transmissão de quatro marchas e dela às rodas por uma corrente banhada em óleo.
Ainda havia pouca potência e torque para deslocar o veículo com os dois ocupantes a bordo. Mesmo assim, por sua economia (26,7 km/l em média pelos padrões da época), o Isetta parecia bem adequado às condições da Europa em recuperação da guerra. A suspensão era independente na frente com braços avançados (conceito Dubonnet), molas de borracha e amortecedores por fricção, enquanto a traseira usava amortecedores hidráulicos. Com freios a tambor, o carro já tinha sistema elétrico de 12 volts, ausente de muitos automóveis maiores.
Nos Estados Unidos, a revista Focus via nele um “novo e quente carro esporte por menos de US$ 1.000”, por mais imprópria que nos pareça a classificação. “Esse anão italiano parece um besouro, tem som de vespa, lembra um brinquedo, mas sua aparência engana. Há espaço mais que suficiente no banco e para as pernas. Após se acostumar em minutos à transmissão, o motorista descobre que trocas de marcha a plena potência estão na ordem do dia. Ele toma curvas sem piscar um farol e seus freios sensíveis o param de imediato, sem afundar a frente”.
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Com as portas ao lado
Quem vê o Hoffmann Autokabine 250 (acima) pode pensar que se trata de um Isetta… até perceber que ele tem duas portas “suicidas” (abertas para trás) nas laterais, em vez da única porta frontal. Esse quase-clone do modelo italiano surgiu em 1954 pela Hoffmann Werke, que pouco antes fabricara a motoneta Vespa em Ratingen-Lintorf (perto de Düsseldorf), Alemanha, sob licença da Piaggio.
Após ter a licença da Vespa cancelada, Jakob Oswald Hoffmann contatou a Iso para licenciar a produção do Isetta, mas obteve a negativa. Decidiu então copiar o projeto, alterando itens que não lhe agradavam: mudou a porta frontal para uma lateral direita (na versão básica) ou uma de cada lado (na superior), aumentou a distância entre eixos e montou seu próprio motor a quatro tempos de 198 cm³ e 10 cv no centro entre as rodas traseiras, o que dispensava a corrente de transmissão. As novas portas podiam ser mais seguras em caso de colisão frontal, mas descartavam uma vantagem: a porta junto à calçada ao estacionar de frente. Se outros veículos parassem muito perto do Autokabine, seu motorista poderia se ver sem acesso ao interior ao voltar.
Claro, a Iso não gostou da ideia e pôs o departamento jurídico para funcionar. Mas o que acabou com os planos de Hoffmann foi o licenciamento do Isetta para a BMW, que recebeu prioridade do Deutsche Bank, levando-o a cancelar o empréstimo solicitado pela empresa de Düsseldorf. Processada em conjunto pela BMW e pela Iso, a Hoffmann pediu concordata e o Autokabine acabou após apenas 113 unidades — que, segundo a lenda, foram compradas pelo grupo de Munique e destruídas.
Outra “interpretação” do Isetta foi o Heinkel Kabine (acima), feito entre 1956 e 1958 na Alemanha e entre 1960 e 1966 pela inglesa Trojan. O modelo inicial tinha um cilindro a quatro tempos, 174 cm³ e porta frontal como no italiano, mas com estrutura monobloco, pequeno banco traseiro para duas crianças e uma só roda posterior. O volante não acompanhava a abertura da porta, uma das medidas da Heinkel para não infringir patentes do Isetta.
Os utilitários
A Iso fabricou na Itália e na Espanha curiosos utilitários com base no Isetta, chamados de Isocarro ou Isetta Autocarro. Disponíveis como furgão, picape com caçamba de madeira ou de aço e até minicaminhão de bombeiro, aproveitavam 80% dos componentes do modelo original, mas eram bem mais longos (3,80 m) e podiam transportar até 500 kg de carga. Usavam transmissão por cardã, suspensão traseira com feixes de molas semielípticas e, como as rodas ficavam mais afastadas, diferencial. Estima-se que 4 mil foram feitos.
Mais simples era a conversão do Isetta em uma pequena picape (à direita), mantendo a seção traseira e a mecânica originais, mas com uma diminuta caçamba acoplada ao local do vidro posterior. De acordo com a Romi, a versão foi produzida na Alemanha e na Inglaterra e a Força Aérea britânica encomendou algumas unidades para uso em suas bases aéreas.