Como é comprar, manter e dirigir um carro em um país-continente desenvolvido e com um mercado bastante disputado
Texto e fotos: Felipe Hoffmann
A Austrália é um país conhecido mundo afora por sua qualidade de vida, seu desenvolvimento, a diversidade e as singularidades do reino animal. Mas é também um país com fatos únicos no que se refere aos automóveis.
Vim de São Paulo para Melbourne, no estado de Victoria, em 2010. Frustrado sobre como meu país caminhava, depois de muita pesquisa sobre o famoso “Brasil que deu certo”, decidi me mudar para uma cidade australiana na qual poderia encontrar emprego em minha área da engenharia mecânica. Claro que notei a diferença do mercado automotivo em relação ao Brasil logo ao sair do aeroporto, onde os táxis eram grandes sedãs Ford Falcon (maioria absoluta) e Holden Commodore. Achei estranho que pudesse ser viável um táxi de quase duas toneladas e motor de 4,0 litros, mas a adaptação me mostrou que Corolla, Focus e Cruze são considerados pequenos para eles.
O australiano sempre teve um forte amor pelos sedãs grandes, potentes e de tração traseira — e suas variações, como peruas e picapes, a que chamam de utes. Até 2010 o Commodore foi o carro mais vendido no país por 14 anos; antes, o Falcon liderou o mercado por uma década. Entre os motivos dessa preferência estavam desempenho, boa dinâmica, espaço para família e bagagem em viagens (com distâncias continentais, a Austrália é o país no qual os veículos rodam mais quilômetros por ano). Mas não só.
O grande sedã Ford Falcon lidera o mercado de táxis e é comum também em frotas policiais (à direita uma perua Holden Commodore)
Esses grandes carros desenvolvidos para as condições locais (mesmo quando derivados de projetos norte-americanos, como foi o Falcon em sua origem, ou europeus, como no passado do Commodore) são bastante robustos: mesmo hoje, basta sair 50 km dos grandes centros para ver como o país é pouco povoado, sobretudo nas grandes áreas de deserto. Capacidade de reboque também é fator importante: muitos compradores de Falcon e Commodore querem tracionar um barco, trailer (caravan) e até carretas com cavalos. Por isso, o Falcon hoje tem capacidade de rebocar 2.300 kg. A tração traseira garante que não haverá problemas, por exemplo, ao descer um veleiro na água — e é claro que isso requer muito torque em baixa rotação.
A antiga rixa entre as marcas locais está acabando: dizer que alguém vinha de uma família de Fords ou de Holdens ficou para trás com a abertura do mercado
Falando de motores, é interessante viver num país que, como os Estados Unidos, sempre teve a tradição de motores potentes e combustível barato. A gasolina aqui custa de AUD 1,20 a AUD 1,30 o litro, ou R$ 3,06 a R$ 3,31(pela cotação de R$ 2,55, que usaremos neste artigo). Se parece caro, considere que o salário mínimo australiano é de AUD 17 (R$ 43) por hora, cerca de AUD 650 (R$ 1.650) por semana ou AUD 34.000 (R$ 86.700) ao ano.
Temos também o LPG, gás liquefeito de petróleo (o GLP ou gás de cozinha no Brasil), uma mistura de gás butano e propano que é abundante na Austrália — grande exportadora de gás para o mundo. O LPG fica líquido no tanque, é vendido por litro e seu consumo fica em torno de 30% acima do litro da gasolina. Como é vendido em Melbourne por AUD 0,50 (R$ 1,27) o litro, o resultado é enorme economia por quilômetro. Além disso, há veículos dedicados ao LPG de fábrica e reembolso pelo governo quando se converte o carro para o gás.
Apreciados pelo conforto, os sedãs de tração traseira foram os carros mais vendidos por mais de 20 anos — e servem até para puxar barcos
Picapes como Ranger e Hilux são usadas para trabalhar, em geral com caçambas planas, nas quais os profissionais deixam ferramentas à mostra
Os convertidos em geral usam gás vaporizado, como no GNV no Brasil, mas o Falcon possui um sistema que usa injetores e consegue mais potência que no modelo a gasolina, 270 cv. Capaz de acelerar de 0 a 100 km/h em cerca de 7 segundos, é o táxi mais rápido do mundo e o carro mais barato de rodar aqui — mais que os híbridos Toyota Prius e Camry Hybrid —, além de ser comum o motor durar mais de um milhão de km.
Apesar dessa tradição, nota-se uma transformação nos últimos anos. Desde 2011 o australiano tem aumentado a preferência por carros “pequenos” (como Mazda 3 e Toyota Corolla), utilitários esporte (tanto que a Holden e a Ford criaram os seus, com base no Commodore e no Falcon) e picapes com chassi próprio (Toyota Hilux, Ford Ranger, etc.), embora boa parte do aumento de vendas de picapes se deva ao crescimento das empresas de mineração. Sobre elas, vale a curiosidade de que, ao contrário do Brasil, picapes como Hilux e Ranger são veículos de trabalho, muitas vezes equipadas com caçambas planas (flat deck ou flat tray) para aumento da área de carga ou para instalar caixas de ferramentas.
Portanto, dois choques culturais: um, que profissionais como encanadores usam picapes de “luxo” do Brasil; outro, que podem deixar todas as ferramentas na caçamba com o carro estacionado na rua sem que ninguém roube. As utes, derivadas de Commodore e Falcon, perderam terreno para as picapes mais altas e têm-se tornado carros de lazer ou para o dia a dia, a ponto de haver versões turbo e V8 com aparência esportiva.
Antes comuns no trabalho, as “utes” ou picapes derivadas dos carros Ford (em cima) e Holden (embaixo) hoje são mais usadas para o lazer
Outro efeito das mudanças no mercado é que a antiga rixa entre os amantes de Fords e de Holdens está acabando. Aqui era comum se dizer que alguém vinha de uma família de Fords ou de Holdens, o que ficou para trás com a abertura do mercado aos importados, nos últimos 20 anos, e as reduções contínuas de impostos de importação. Um bom reflexo disso eram as corridas de Super V8, com carros similares aos de rua, mas com motores de 600 cv ou mais. No ano passado adotou-se chassi único para todos e abriu-se espaço a outras marcas como Nissan, Mercedes-Benz e Volvo — perdeu-se um pouco o brilho da “rixa” australiana, mas a mais famosa corrida do ano, em Bathurst, ainda “para” metade do país.
Como consequência natural dessa mudança no mercado, as fábricas australianas declinaram na última década. A primeira a fechar sua unidade foi a Mitsubishi, em 2008; depois a Ford anunciou que fechará a produção em 2016 — uma bomba, pois o peso e a tradição da Ford na Austrália se equivalem aos da Volkswagen no Brasil. A arquirrival Holden, junto com a Toyota, anunciou fechamento de fábricas e da engenharia local em 2017. Os custos de fabricação e o baixo volume de vendas têm deixado as empresas no prejuízo.
Para entender o cenário, o mercado australiano conta hoje com 55 marcas e mais de 200 modelos. Assim, mesmo com vendas totais de 1,1 milhão de carros no ano passado, o líder Corolla somou apenas 43.700 unidades e os 10 mais vendidos representam apenas 27% do mercado. Juntem-se a isso os altos salários e a receita para falir está pronta… Segundo o presidente da Ford, na época do anúncio do fechamento, um operário australiano representava em custo o mesmo que quatro tailandeses ou dois alemães. Por outro lado, a Ford manterá no país um centro de desenvolvimento que atende ao mercado asiático (com grande foco na China) e trabalha em produtos globais, como a Ranger. A Holden preferiu usar a engenharia da Coreia do Sul para esta função, e a Toyota, o Japão.
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