Automóveis, da Teoria da Inovação à prática das leis

O lucro depende de estar-se à frente da concorrência, mas legislação, arranjo produtivo e mercados adjacentes não deixam

 

No início dos anos 1980, quando eu estava fazendo o mestrado e a Teoria da Inovação estava no auge, antes mesmo de Michael Porter ter citado a teoria das vantagens competitivas, levei minha então noiva a uma exposição de automóveis antigos no espaço já abandonado pelo Salão do Automóvel no Ibirapuera, em São Paulo. Ela observou que os carros de uma dada época são sempre muito parecidos, o que permanece até hoje.

Claro que existem as modas e os carros também as seguem, mas não da mesma forma com que se determinam as roupas e adereços a se usarem na próxima estação, mesmo porque carros não duram tão pouco assim. Essa proximidade foi muito maior nos anos dourados, quando ter “carro do ano” era sinônimo de sucesso profissional, de estar em dia com as tendências. No Brasil, isso também valia, mesmo que em escala de quantidade e preço muito menores. As alterações de um ano para o outro eram mínimas, muitas vezes, limitando-se a novas cores, um friso aqui, uma nova iluminação para a placa ali. Mesmo assim, ter o carro do ano era como usar a calça da moda, mesmo que a moda fossem as ridículas bocas-de-sino.

 

Até os anos 1980, todo carro nos Estados Unidos usava faróis sealed-beam — resultado não de alguma legislação, mas do lobby da General Electric e das seguradoras

 

Pneus radiais não eram aplicados nos EUA até a década de 1970, mesmo em carros potentes como esse Ford Mustang Shelby

Tentar explicar a semelhança entre os automóveis de uma mesma época, independentemente da marca, somente pela moda é ingênuo. É preciso considerar o estágio do desenvolvimento tecnológico e, acima de tudo, a necessidade de inovar. Mas, será possível inovar de fato num ramo tão complexo, com uma cadeia de suprimentos tão intrincada, cujos investimentos somente contratos de longo prazo podem viabilizar?

Como se não bastassem as limitações industriais, há ainda as externalidades, como a legislação variando de país a país e os lobbies de mercados adjacentes como o das seguradoras. Até os anos 1980, nos Estados Unidos, não se usavam faróis com lâmpadas como conhecemos, mas o sealed-beam — resultado não de alguma legislação, mas do lobby da General Electric e das seguradoras. Da mesma forma, até o fim dos anos 1970, pneus radiais não se usavam naquele país, sendo quase obrigatório o wide oval, sempre em dois conjuntos, para asfalto e para neve. Até nas vendas criou-se um padrão, com a ideia de Henry Ford de estender uma rede de concessionárias por todo o território norte-americano, levando a fábrica para perto do consumidor final.

Enquanto essas travas ao avanço tecnológico ocorriam no mundo real, no acadêmico, os teóricos digladiavam-se entre a ideia de maximização, herdada do inglês Alfred Marshall, e o evolucionismo do austríaco Joseph Schumpeter. Para o primeiro time, a empresa funciona dentro de uma dada tecnologia, que é de conhecimento público e, nessas condições, ela busca o máximo lucro com a máxima racionalidade. Para o segundo grupo, a empresa é como um organismo vivo que evolui ao longo de sua vida, sempre incorporando novos conhecimentos e buscando algo novo a oferecer ao mercado, para se adiantar à concorrência e se manter lucrativa.

 

 

Melhoria contínua e otimização

Esses economistas não somente aproximaram a economia das demais ciências sociais, como trouxeram para seu bojo grande parte de seus conceitos, incluindo os de História das Ciências, como o italiano Giovanni Dosi, ao importar de lá a ideia de paradigma desenvolvida pelo norte-americano Thomas Kuhn. Todos crendo que os ciclos de prosperidade e depressão fossem oriundos da capacidade de as empresas romperem com o passado e criarem coisas realmente novas, no que se chamou de destruição criativa. A única a considerar as restrições legais e contratuais foi a venezuelana Carlota Perez, porém, já depois de o norte-americano John Kenneth Galbraith vir, desde a metade dos anos 1970, dizendo que nada de novo se tinha inventado desde a Segunda Guerra, tanto no mundo capitalista como no socialista.

Ora, se o anseio é o lucro e ele depende de estar-se um passo à frente da concorrência, mas a legislação, o arranjo produtivo e os mercados adjacentes não deixam, o que resta como estratégia? Um misto de melhoria contínua e otimização parece ser uma boa hipótese. Inova-se no que for permitido, ao mesmo tempo em que se busca otimizar processos, seja em âmbito mercadológico, administrativo ou produtivo.

 

O método da GM — também usado pela Volkswagen — pareceu mais bem-sucedido: podia oferecer uma larga gama de modelos com relativamente poucos itens de estoque

 

O carro mundial, como nosso Chevrolet Chevette, teve de ceder às peculiaridades de cada mercado

A busca pelo carro mundial mostra bem isso. Em 1908 a General Motors já tentava usar os mesmos chassis para as linhas Buick, Chevrolet, Oldsmobile e Pontiac. Ela foi copiada pela Chrysler para as linhas De Soto, Dodge e Plymouth. Já a Ford pensou em usar exatamente o mesmo carro no mundo inteiro, descentralizando parte da linha de montagem do Modelo T, como no Brasil em 1919 ou com o Aeroford na Inglaterra em 1920, sendo obrigada a admitir grandes alterações.

O método da GM — também usado pela Volkswagen, exceto na Kombi — pareceu mais bem-sucedido, levando a empresa ao primeiro lugar entre os fabricantes de automóveis, visto que podia oferecer uma larga gama de modelos com relativamente poucos itens de estoque, até que a construção monobloco popularizou-se e dificultou a disseminação.

A ideia de carro mundial ressurgiu nos anos 1970 com o inglês Hillman Avenger (Dodge 1800/Polara no Brasil) e o carro T da GM (Opel Kadett C alemão, aqui Chevrolet Chevette, e muitas variações mundo afora). Na década seguinte ganhou força com o carro J da GM (Opel Ascona, Chevrolet Monza, etc.), Fiat Uno e Ford Escort, entre outros. Tudo, no entanto, era restrito pelas variações de legislação, de tipo de piso, de clima, de combustível e de cultura do consumidor. A ideia de usar plataformas modulares, como a série MQB da Volkswagen, parece ser uma posição intermediária entre os antigos chassis padronizados e a construção monobloco, generalizada desde os anos 1960, na busca de um carro que se possa chamar de mundial.

O fato é que carros não podem ser idênticos por toda a face da terra. E a indústria de automóveis, pelo menos em produto, não é capaz de provocar uma destruição criativa, posto que ela já existiu quando se adotaram os motores e aboliram-se os cavalos como meio de tração. Nem mesmo a Tesla conseguiu provocar semelhante efeito na indústria, porque seus modelos continuam sendo carros stricto sensu e o que se apresenta como inovador veio de outros produtos, desde os motores elétricos às baterias. O que não os deixa menos apaixonantes.

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A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars

 

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