Se o Estado não fiscaliza e a iniciativa privada entrega o mínimo, como obter qualidade de pavimentação?
Em um ano perdi dois pneus por culpa das crateras que infestam as ruas de São Paulo. Quando se rasgou o primeiro, substituí por outro igual. Quando foi a vez do segundo, não encontrei do mesmo modelo porque nem mesmo a Nissan continuava importando os originais. Pus o estepe para rodar e o alienígena foi para o porta-malas. Se rasgar mais um, terei de pôr dois alienígenas para rodar no mesmo eixo e um dos originais vai para o estepe. Inconveniência que se soma ao prejuízo causado pela compra de dois pneus antes dos 16.000 km rodados.
Não há como suportar o péssimo estado do calçamento de nossos logradouros. Nas vias administradas pelo Estado, faltam fiscais para verificar a qualidade da manutenção e os poucos que existem parecem sofrer grande pressão das empreiteiras para fazer vista grossa à prevaricação. A lei 8.666/1993 não fornece instrumentos capazes de fomentar o acompanhamento técnico dos serviços prestados ao governo. As estradas privatizadas que cobram pedágios exorbitantes são um pouco melhores, mas estão muito longe de serem satisfatórias.
A capacidade de usar os registros para manter eventos dentro de parâmetros estabelecidos é controle; portanto, registro é passado e controle é futuro

Se o Estado não fiscaliza e a iniciativa privada prima por entregar o mínimo e cobrar o máximo, será que há como controlar a qualidade dos serviços de pavimentação e sinalização?
Existe uma grande diferença entre medição, registro e controle. Medição é a determinação de uma grandeza absoluta como em um termômetro, um multímetro ou um velocímetro. A memória de medidas sucessivas é o registro. A capacidade de usar os registros para manter eventos dentro de parâmetros estabelecidos é controle. Portanto, registro é passado e controle é futuro. O velocímetro de nossos automóveis mede em que velocidade estamos em um dado momento, o tacógrafo de um utilitário registra ocorrências de caráter predefinido em um dado intervalo, mas ambos dependem de outros instrumentos para se tornarem controle.
O controle de velocidade, sob o ponto de vista do motorista, vale-se do velocímetro como instrumento, do cérebro do motorista como registro e do acelerador e do freio como atuadores. Um radar mede a velocidade de um veículo, sua memória interna como repositório registra o evento e, caso a velocidade exceda um dado limite, a câmara fotográfica é acionada identificando o automóvel. O resultado é uma multa. O radar mede, registra e controla a câmara que, por sua vez, identifica o infrator — mas o controle da velocidade em si é o temor do desembolso. O sujeito de controle é o Estado, o artefato de controle é o conjunto radar/câmara e o objeto de controle é a velocidade. Há mesmo quem diga que a vítima do descontrole somos nós, usuários.
Controle via automação
Os últimos 30 anos trouxeram para a indústria uma visão nova para o controle, ao buscar a máxima objetividade via automação. A análise de vibrações, por exemplo, pode soar um alarme indicando qual rolamento de uma esteira rolante está prestes a se destruir e sua substituição ocorre antes que a máquina pare. Demorou muito para que essa ideia saísse da indústria para outros setores da economia. É que o custo do controle não pode ser mais alto que o objeto de controle. Na medida em que os sensores se foram tornando mais baratos, a automação tornou-se comum em vários itens de nosso dia a dia, sem que sequer nos déssemos conta.
Já há lavadoras que calculam a quantidade de sabão, amaciante e água a partir da medição do peso da roupa. Os automóveis não poderiam ficar fora disso, mesmo porque sempre contaram com sensores como de velocidade, temperatura do líquido de arrefecimento e pressão de óleo, entre outros. Faltava adicionar alguns, como acelerômetros e giroscópios, para o resultado transformar-se em controles de estabilidade, tração, frenagem, pressão dos pneus, assistentes de estacionamento, de descidas e tantos outros com que nos estamos acostumando a cada lançamento. Entre eles o subutilizado GPS que, a partir de um banco de dados contendo os logradouros públicos, permite traçar rotas e rastrear veículos.
Se as irregularidades forem ocasionadas pela má execução do serviço, impute-se esse demérito à empreiteira que, nas próximas licitações, já sai em desvantagem

Suponhamos que os dados de irregularidades no calçamento sejam medidos pelos acelerômetros e giroscópios, registrados pelas centrais eletrônicas dos automóveis e que os eventos que fogem aos parâmetros sejam transmitidos, juntamente com os dados geodésicos, para a prefeitura. Esta, então, aciona as equipes de reparos — privatizadas ou não — e cobra o serviço de quem pavimentou a via ou de quem causou o estrago. Note-se que não é preciso transmitir a identificação de cada automóvel: basta saber que ali há um buraco profundo demais, largo demais, assim como um calombo alto demais, ou mesmo inclinação exagerada no leito carroçável.
Se as irregularidades forem ocasionadas pela má execução do serviço (ou seja, não se registrando nenhum evento que demonstre o contrário), impute-se esse demérito à empreiteira que, nas próximas licitações, já sai em desvantagem, quando não seja alijada de concorrer. Caso o estrago seja causado por uma concessionária de águas ou eletricidade, por exemplo, é nelas que a cobrança pode recair. Caso se trate de uma lombada clandestina, rateie-se o custo do reparo entre os moradores nas imediações porque, mesmo não sendo os infratores diretos, não denunciaram.
Por outro lado, caso se empregue um sistema como o descrito, a prefeitura terá como ressarcir o dano ao usuário com a posterior cobrança do terceiro envolvido. Aliás, eu não gostaria de ser ressarcido por coisa alguma — isso não passa de remendo. Ideal seria que meu carro nunca sofresse avarias causadas pela desídia do Estado.
Tecnologicamente, não está longe o dia em que o cidadão passará de vítima do descontrole para agente de controle, posto que o sujeito continua sendo o Estado, que fala por todos nós. Para que ocorra esse choque de responsabilidade, primeiro, é preciso que haja vontade política; segundo, que os carros sejam padronizados em conteúdo mínimo, o que aos poucos já está acontecendo.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars
Fotos: Fabrício Samahá (buracos) e divulgação (pneu)