A indústria mais complexa de produção em série viabiliza inúmeras outras, que são a base para mais indústrias
Nos anos 1980, eu trabalhava numa indústria de eletrônica cuja fonte real de lucro era material bélico, além de sistemas de comunicação à prova de explosão, vendidos para a Petrobras e outras empresas críticas em segurança. A empresa fabricava também horríveis vitrolinhas portáteis, que voltaram a ser vendidas por conta da crise da dívida externa, que empobreceu significativamente a população.
Observei que as vitrolinhas eram as únicas do mercado com as três rotações: 33, 45 e 78 rpm. Só que já não se faziam discos de 78 rpm havia anos e os de 45 rpm nunca foram fabricados no Brasil. Achei um desperdício e calculei quanto se economizaria em material e mão de obra, caso essa comutação fosse retirada. Produzíamos mais de 300 mil vitrolinhas por ano. O comutador de rotações representava centenas de milhares de dólares. Com a arrogância de um recém-formado, fui mostrar minha descoberta para o diretor industrial, meu chefe.
Produzir automóveis levou a indústria do aço a crescer e modernizar-se, a ponto de ser uma das maiores do mundo, e o mesmo aconteceu com usinagem e metalurgia como um todo
Com toda a paciência do mundo, ele me ouviu, parabenizou pela diligência e pegou uma pasta em que havia cálculos mensais semelhantes ao meu. Ele disse que tínhamos 70% do mercado brasileiro de vitrolinha e que as três rotações eram justamente o nosso argumento de venda. Foi a melhor aula de estratégia de negócios que tive e veio de um empresário que só cursara até o equivalente ao nono ano de hoje.
Os que defendem que, não tendo vantagem comparativa ou competitiva, como Michael Porter enfeitou a noiva, deve-se abrir mão da indústria e importar o produto, são primários no que tange ao raciocínio estratégico. Fazer conta de custos, como se tudo fosse estanque, é muito fácil. Difícil é calcular as implicações que uma decisão tão míope quanto mecânica pode trazer. Se tirássemos o comutador de rotações, talvez nossas vendas caíssem para menos de um terço.
Produzir vitrolinhas em quantidade, aliás, viabilizava fabricar os equipamentos complexos, pois aproveitavam-se até 70% de suas peças, quando não das máquinas e infraestrutura industrial. Houve tempos em que, para manter as injetoras funcionando em três turnos, fornecemos lanternas para a Ford. Suponhamos que não se produzissem automóveis no Brasil e que todos os veículos viessem de onde sua produção fosse mais barata. O que aconteceria com o País?
Reprodução ampliada
A indústria de automóveis é a mais complexa entre as destinadas à produção em série e é ela que viabiliza inúmeras outras, que são a base para mais indústrias, numa cadeia quase impossível de medir. A existência da Siderúrgica Nacional e da Cosipa, da Sofunge e da fundição Tupi viabilizou a vinda da indústria automobilística para cá, porque as demais siderúrgicas (Gerdal e Aliperte) não tinham volume para atender a demanda. Produzir automóveis, por sua vez, levou nossa indústria do aço a crescer e modernizar-se a ponto de ser uma das maiores do mundo.
Uma deu, a outra recebeu e devolveu em maior quantidade, no que os economistas chamam de reprodução ampliada. O mesmo aconteceu com a usinagem e metalurgia como um todo, indo de um simples rebite até um parafuso especial de alta complexidade, ou à sinterização de peças de ferro. Vou dar três exemplos cuja viabilidade depende estreitamente da existência de uma indústria de automóveis no País.
O Brasil, como campeão do agronegócio, não pode prescindir de contar com uma indústria igualmente pujante de material rodante de carga
O primeiro exemplo refere-se à capacidade de reposição e reparação. Importam-se carros de bombeiros, cujos componentes — quase 80% — encontram similares no país. Sem esse suprimento de peças, seu uso seria radicalmente inviável, pois são veículos cujo uso é crítico em essência, posto que tudo o que um carro de bombeiros faz é atender emergências. Imaginemos a complexidade dos estoques de peças de reposição que deveria estar ao dispor do corpo de bombeiros, caso não se pudesse comprar um simples parafuso na esquina.
O segundo exemplo são as “ambulanchas”, que só existem no Brasil e atendem alguns milhões de ribeirinhos na Amazônia. Seus cascos são feitos para ter o menor calado possível quando em movimento para, literalmente, passar por cima de troncos e outros detritos flutuantes, ao mesmo tempo em que não podem fazer marolas, para não destruir as casas flutuantes ou alagar lavouras de subsistência. Apesar de tão necessárias, não podem ser importadas sob projeto pois seriam muito caras e de difícil traslado. A quantidade produzida é baixa demais para gerar escala autônoma, além de a criticidade de seu uso não permitir depender de importação de componentes. Se não fosse a indústria de automóveis, que viabiliza desde as chapas usadas nos cascos até os motores Diesel nacionais marinizados, essa população voltaria à falta de atendimento da primeira metade do século passado.
O terceiro exemplo é o da indústria de reboques, pois o Brasil, como campeão do agronegócio, não pode prescindir de contar com uma indústria igualmente pujante de material rodante de carga. Treminhões são raríssimos fora do Brasil. Até existem fora, mas não servem para a quantidade de cana-de-açúcar e grãos que transportamos por distâncias que só existem aqui, na Rússia e nos Estados Unidos — mesmo assim, neles as faixas de uso são muito mais restritas que as nossas. Para complicar, a necessidade de transporte concentra-se no tempo e no espaço, visto que a produção se dá toda de uma vez, região a região. Se não fosse nossa indústria automobilística, o País ficaria refém para fazer o que sabe fazer melhor, deixando de ter vantagens competitivas no agronegócio.
Nas 115 matérias anteriores, procurei dar uma ideia da importância de manter nossa indústria trabalhando e com pernas próprias, sem que o Estado esteja sujeito às constantes chantagens das empresas do setor, via transparência nas suas contas, o que só se consegue obrigando-as a abrir seu capital. Ao mesmo tempo, procurei mostrar como otimizar a escala, estendendo as mesmas condições de crédito ao consumidor a todos os países de influência, fomentando as exportações. A mais importante, entre as ideias que defendo, é substituir o índice de nacionalização baseado na parcela do peso físico de componentes fabricados no País por um outro baseado na parcela do valor final do carro projetado no Brasil, induzindo a inovação, que é o grande mantenedor de vantagens competitivas.
Espero ter deixado muitas pessoas com algumas dúvidas e algumas pessoas com muitas dúvidas. Como diria Chacrinha, “Eu não venho para esclarecer, venho para confundir” e fazer pensar. Provocar discussões é a melhor forma de crescer. Como o Best Cars encerra seu conteúdo nos próximos dias, daqui para a frente o leitor poderá me encontrar em Brasil para o Capitalismo, Capitalismo para o Brasil, na Coluna do Prof. Luiz Alberto em Carros e Garagem e, a partir de 11 de junho, no Jornal GGN do Luís Nassif.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars