Indústria de automóveis e as revoluções que não ocorreram

Carro, Micro & Macro - Luiz Alberto Melchert

A invasão da cerâmica e o uso extenso da sinterização eram guinadas tecnológicas esperadas: o que as terá impedido?

Em 1987, escrevi uma matéria para a revista Brasil Mineral com o título: “Cerâmica, há 2.000 anos o material do futuro”. Esse artigo foi parte de uma campanha de marketing para a remessa de uma missão técnica ao Japão, país que mais investe nessa categoria de materiais. Relendo o texto, apesar de envergonhar-me de sua baixa qualidade, apercebi-me do quão atual continua sendo. Baixa qualidade? Sim: mesmo hoje, relendo as 100 matérias que escrevi para este espaço, noto claramente uma evolução na qualidade da redação. Sempre há o que melhorar e só a imposição de desafios colabora com nosso enriquecimento intelectual.

Naquele tempo, quando as velas de ignição e demais isolantes de alta tensão representavam a quase totalidade do emprego tecnicamente mais especializado em veículos, acreditava-se que haveria uma invasão da cerâmica no maior e mais complexo mercado entre as indústrias de produção em massa. Os rolamentos, por exemplo, poderiam passar a ter esferas de carbeto de silício correndo em trilhas de pura alumina, dispensando lubrificação, a exemplo do que ocorre em turbinas de avião. De fato, alguns componentes passaram a usar cerâmica, como é o caso das sedes de válvulas, só que a revolução não ocorreu.

Acreditava-se que haveria uma invasão da cerâmica no maior e mais complexo mercado entre as indústrias de produção em massa, só que não aconteceu

Aditivos como o nióbio têm ampliado a resistência do aço, como na estrutura dos automóveis

Ao mesmo tempo, imaginava-se que a sinterização, que é a solidificação de pós, num estágio anterior à fusão, prática sobejamente usada na cerâmica, substituísse a fusão em larga escala, por deixar o produto dimensionalmente mais estável e até dispensar usinagem. Até se fizeram engrenagens sinterizadas de ótima qualidade, cujo dispêndio de energia na fabricação era mínimo e, sobretudo, sem ser preciso fresar os dentes. A revolução também não aconteceu e hoje continua-se fundindo a maioria das peças dos automóveis. O que terá impedido essas guinadas tecnológicas?

Na minha primeira matéria, falei sobre a teoria dos contratos e como ela mostra a inércia da indústria, que age como um jogador profissional de xadrez fiel a sua estratégia, persistindo em um dado caminho tecnológico até que se torne totalmente inviável. Foi isso, sim, mas não só. A automação dos processos tradicionais e a tecnologia de materiais ligada à metalurgia, a meu ver, foram os grandes impeditivos. Para sinterizar uma engrenagem, por exemplo, é preciso moer o metal em grãos tão pequenos que, ao tato, parece um líquido — estado que se chama de impalpável, quando apesar de seco, o material corre por tubulações como se líquido fosse.

Depois, é preciso encher um molde de borracha, que já contém o negativo do formato definitivo da peça, pressionando o material até que que o molde cheio pareça uma bola. O próximo passo é pôr uma grande quantidade dessas “bolas” em uma prensa isostática. Ela é um botijão que se vai enchendo com uma mistura de óleo especial e água, até que a pressão atinja uns 2.000 kg/cm². O nome da prensa vem de que a pressão é exercida igualmente em todas as direções, dando a forma definitiva ao material prensado. Falta elevar a temperatura a 700°C, quando então os grãos se aderem, atribuindo grande resistência ao produto. O último passo é o tratamento de superfície para aumentar a resistência à abrasão.

Cadeia em ebulição

Lindo processo, digno de aplausos e, certamente, tem seu uso — mas não em larga escala, perante o uso de aditivos como o nióbio a 0,1% para dar resistência, a melhoria dos métodos de fusão e, em especial, a automação da usinagem.

Mas não é só isso. A concorrência não se limita ao produto final: a cadeia de suprimentos está sempre em ebulição. Se o Brasil é o maior produtor de nióbio do mundo, haverá sempre um concorrente potencial investindo milhões de dólares em técnicas e materiais capazes de o substituir a custo mais baixo, quando não para mitigar o poder do monopolista. Durante muito tempo, houve um convênio entre a CBMM (Companhia Brasileira de Mineração e Metalurgia), detentora de mais de 80% da produção mundial de nióbio, e a Universidade Federal de São Carlos, cujo laboratório tive a oportunidade de visitar.

Se o Brasil é o maior produtor de nióbio do mundo, haverá sempre um concorrente potencial buscando substituí-lo a custo mais baixo e mitigar o poder do monopolista

Novas ligas e processos permitem adotar o alumínio em peças de alto estresse, como braços de suspensão

Ao mesmo tempo, a empresa mantinha um escritório de consultoria em tecnologia de materiais no Japão para divulgar os resultados das pesquisas, antecipando-se à concorrência. Até houve um artigo científico publicado pela instituição de ensino em que lecionei, denominado “Nióbio, um exemplo do marketing aplicado ao monopólio”. Muito desse protagonismo se perdeu ao longo dos anos 1990, em especial com a venda de 30% da empresa a um consórcio japonês, coreano e chinês, ao mesmo tempo em que a CMOC Brasil, subsidiária da China Molybdenum (CMOC), passou a minerar em Catalão, GO, a partir da compra da Mineração Araxá.

O fato é que a siderurgia está, dia a dia, mais capaz de vencer a grande densidade do ferro via adoção de aditivos que redundam em peças mais delgadas com resistência ainda maior. A indústria do alumínio não está parada, investindo em novas ligas e novos processos, como a forjaria, antes limitada aos metais derivados do ferro, permitindo adotar o alumínio em peças de alto estresse como braços de suspensão. Até mesmo pelas pesquisas em sinterização ela se embrenhou e a Zenith, fábrica norte-americana de carburadores, adotou o processo antes de finalmente render-se aos sistemas de injeção, que também se tornaram viáveis por conta da disputa da cadeia de suprimentos pelo maior mercado de componentes, representado pela indústria de automóveis.

Temos duas lições a aprender. A primeira é que a concorrência pode ser o esteio da evolução tecnológica, muitas vezes, por limitar as aventuras e manter o pé no chão, aperfeiçoando o que notoriamente funciona. A segunda lição — e a mais importante — é que, mesmo para ser conservador, é preciso ser criativo e o investimento em educação e pesquisa não significa, necessariamente, o abandono do que já se sabe. A enorme diferença entre o conservador e o reacionário é que o primeiro olha pelo para-brisa voltando-se ao futuro, enquanto o segundo não tira os olhos do retrovisor e lamenta-se pelo passado.

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A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars


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