Entrada do Brasil na organização traria alinhamento político, que pode ser bom ou mau para nossa indústria
Em 2019, anunciou-se que os Estados Unidos apoiariam o ingresso do Brasil na OCDE (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico). Noticiou-se, então, que a Argentina teria prioridade, só que o novo presidente de los hermanos não agradou Donald Trump e o foco voltou ao Brasil. Se isso acontecer, nossa indústria de automóveis será afetada? Se for, como?
Vamos entender a OCDE. A Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, em 1948, criou a Organização para Cooperação Econômica Europeia e começou a estudar tratados visando a unificação do continente, tanto para a reconstrução e evitar futuros conflitos, como para promover o desenvolvimento econômico. Em 1957, em Roma, assinaram-se três tratados: CECA (Comunidade Europeia para Carvão e Aço), Euratom (Comunidade Europeia de Energia Atômica) e CEE (Comunidade Econômica Europeia). Todas deixavam o Reino Unido, países ibéricos e nórdicos de fora.
A OCDE chegou a 36 países, dos quais 19 produzem automóveis; eles fabricam cerca de 49% do total do globo, o que é bastante significativo
Tudo indicava que os quatro se fundiriam um dia. Como a Europa emergisse como potência, os Estados Unidos, o Canadá e o Reino Unido, participantes da OTAN (Organização do Tratado de Defesa do Atlântico Norte), não poderiam ficar de fora e criou-se a OCDE (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico). Paralelamente, a CEE abarcou a CECA e a Euratom em 1965. Daí para a frente, OCDE e CEE tiveram rumos distintos e independentes. A CEE transformou-se na UEE (União Econômica Europeia), mais tarde UE (União Europeia), enquanto a OCDE começou a admitir países do todo o globo, chegando aos atuais 36, dos quais 19 produzem automóveis e 17 não.
Como os números para 2019 ainda não estão fechados, partindo dos dados do Banco Mundial e aplicando o crescimento médio para os membros e para o mundo, esses países produzem aproximadamente 49,1% do total, o que é bastante significativo. Há ainda 37 países parceiros, entre eles o Brasil.
Dizer que todos eles são ricos é negar a pobreza do México, que foi admitido em 1994 durante o ataque especulativo conhecido como efeito tequila, e da Colômbia, que até hoje se debate contra os sucessores das FARC. Dizer que todos são probos administrativamente beira a esquizofrenia, visto o comportamento de Grécia e Portugal, cujos deslizes só transpareceram com o estouro da bolha especulativa de 2008. Ademais, a Turquia tem um governo comprovadamente belicoso e ditatorial. Pode-se dizer que a OCDE é o mais contraditório grupo transnacional.
Existem países que, mesmo não sendo parte dos 36 oficiais, ou são tidos como observadores num número que beira os 100, ou são parceiros de pleno direito — caso do Brasil, que vem adotando as medidas preconizadas desde os anos 1990, no que tange o comércio internacional, e desde 2007, no que concerne ao mercado financeiro.
Alinhamento político
O principal motivo para ansiar integrá-lo, bem como para ser aceito, é o alinhamento político. É que, para todos os compromissos, há ressalvas. Trocando em miúdos, há uma série de regras que só serão cumpridas se interessarem a cada um dos participantes. Lendo as 214 páginas do tratado em vigor, tem-se a impressão de que nem fede, nem cheira, sendo um compromisso de alinhamento. Prova disso é que pertencer à OCDE não afeta a participação em outras organizações transnacionais como a Organização Mundial de Comércio (OMC), por exemplo.
Desde os anos 1990, o peso dos países desenvolvidos na economia mundial veio declinando ano a ano e, em 2001, em paridade do poder de compra, a soma do Produto Interno Bruto (PIB) de Brasil, China, Índia e Rússia ultrapassou o total da União Europeia somado aos de Estados Unidos, Canadá, Japão e alguns países da Oceania, tidos como desenvolvidos. Adicionou-se a África do Sul e formou-se o Brics, tendendo a constituir um bloco econômico muito sólido como opção contrária à OCDE. Países como Indonésia, Irã e Iraque, entre outros, poderiam aderir, criando uma nova ordem mundial em que os blocos já não seriam ideológicos como na Guerra Fria, mas meramente econômicos. Entrar na OCDE, de certa forma, pode esvaziar o Brics.
O acordo, se cumprido, pode bem ser um renascimento da indústria nacional trabalhando sob licença — o contrato da Caoa com a Chery é um exemplo disso
Aderir à organização não é de todo inútil porque, visando derrubar barreiras à fluidez internacional do capital, ela cria regras para o que se chama de transações invisíveis ou movimento de capital intangível, que são os negócios que não envolvem mercadoria diretamente. Royalties, concessão de marcas e outras transações fazem parte desse conjunto, facilitando empresas nacionais trabalharem com produtos de companhias estrangeiras, sob licença, sem que as concessoras tenham de abrir fábricas no país de destino.
Em outras palavras, o acordo, se cumprido, pode bem ser um renascimento da indústria nacional trabalhando sob licença. O contrato da Caoa com a chinesa Chery é um exemplo disso. Nada impediria, por exemplo, que o mesmo grupo que importa os Subarus viesse a montá-los, quando não fabricá-los, no Brasil.
Ao mesmo tempo, há a ameaça de os modelos licenciados serem obsoletos — como acontece com o Irã, onde a Iran Khodro produz até hoje o Peugeot 206 —, tirando nossa indústria do mercado internacional ou mesmo competindo com as empresas concessoras. Isso já acontece no Brasil, com o acordo em que a Hyundai concedeu à Caoa o direito de produzir o Tucson anterior (não mais fabricado) e o IX35 em Goiás, ambos os modelos mantidos em linha por anos depois de retirados do portfólio mundial da marca. Talvez possam-se ver empresas nacionais produzindo componentes sob licença, como ocorreu no passado com companhias significativas como Cofap e Wapsa.
Como abordamos em outra matéria sobre a transformação de nossos industriais e descendentes em locadores de galpões, retomar a industrialização, mais do que depender de oportunidades induzidas por acordos, passa a ser função de nossos empresários sentirem apetite pelo risco. Será preciso que duas coisas aconteçam: a primeira é que a ideia de transações invisíveis seja incorporada à nossa prática empresarial, e a segunda, que os raríssimos exemplos de produção sob licença que ainda temos no Brasil mostrem-se exuberantemente lucrativos num mercado tão aberto quanto os tempos exigem.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars