Xi! Meu carro virou abóbora!

Carro Micro e Macro

Quer a indústria queira ou não, os acessórios banalizam-se — e isso afeta a percepção de valor pelo consumidor

 

Vinte anos atrás, eu trabalhava numa multinacional e recebemos um funcionário da matriz para gerente comercial. Um dia fomos, ele e eu, no Ford Mondeo novinho da empresa visitar um parceiro. Ao entrar no carro, ele comentou: “Vocês brasileiros são muito estranhos mesmo. Esse carro tem ar-condicionado, vidros elétricos e um monte de acessórios, mas o câmbio é manual. Em qualquer lugar do mundo ele viria antes dos vidros elétricos”.

Ele explicou que a transmissão é usada o tempo todo, enquanto os comandos de vidros, só de vez em quando. Pode-se dizer que é uma idiossincrasia de nosso povo, mas será que essa explicação satisfaz? Será que não existe algo a mais que molda o comportamento do consumidor?

A teoria econômica separa os consumidores em empresariais e finais, de acordo com a forma com que encaram um negócio: B2B (business to business) ou B2C (business to consumer). Pode-se fechar negócios com a mesma pessoa nos dois âmbitos. João pode ser o comprador de uma grande empresa, com verba para adquirir um automóvel para a frota, e procurará agir o mais racionalmente possível. O mesmo João pode estar interessado em comprar um carro para seu uso pessoal, caso em que seu comportamento será bem diferente perante a aquisição de um bem da mesma categoria.

 

Como comprador, João tentará maximizar o retorno sobre o investimento: desvalorização, consumo, garantia, etc. contra o que o veículo pode produzir

 

A indústria automobilística compreende com perfeição esse fenômeno. Suas versões e pacotes de opcionais são compostos a fim de obter a maior vantagem possível nos dois tipos de operação comercial. Como exemplos, rodas de maior diâmetro podem ser vinculadas a bancos de couro (é assim no Jeep Renegade Longitude), assim como a conveniente chave presencial pode estar restrita a uma versão com teto solar (caso do Ford Focus Titanium), mesmo que a utilidade de um item nada tenha em comum com a do outro.

Caixa automática: para o comprador racional, significa produtividade e não conforto

Como comprador, João tentará maximizar o retorno sobre o investimento, como se diz, o ROI (return on investment). Ele fará contas, considerará a desvalorização, o consumo, a garantia, o custo das peças, o seguro e tudo o mais no que se chama de TCO (total cost of ownership, custo total de propriedade) e jogará contra o que aquele veículo é capaz de produzir.

Digamos que esse carro destine-se a um vendedor; consideremos que o departamento comercial o informe quanto vale uma visita a um cliente e quantos quilômetros ele precisa percorrer, em média, para fazer seu trabalho. Grosso modo, João tem todos os elementos para montar um projeto-padrão, colocar os dados carro a carro e obter o resultado econômico daquele investimento. O vendedor do fabricante tentará antecipar os cálculos e procurará mostrar que seu carro tem o menor TCO do mercado: não importa qual será a atividade, ele sempre será o melhor negócio possível.

Ele vai dizer que a transmissão automática pode evitar uma LER (lesão por esforço repetitivo), que o risco de acidentes será menor, que o motor durará mais e assim por diante — tudo para mostrar que seu uso será mais produtivo do que com caixa manual. Caberá a João verificar que os números que o vendedor apresenta são ou não reais para tomar suas decisões.

 

 

Percepções de valor

João consumidor é outra pessoa, por mais que sua experiência profissional possa impregnar suas decisões. Os benefícios que o carro trará não se podem transformar em números; então, por mais que ele faça cálculos de custo, não terá com o que comparar. Ele se vai comportar por percepções de valor. Quanto vale o ar-condicionado? Vale, além de não passar calor e não chegar suado, a pretensa integridade dele e de seus familiares porque poderá andar de vidro fechado.

Quanto vale para João consumidor a caixa automática? Vale a redução de barbeiragens dele ou de sua esposa, visto que não é possível deixar o motor morrer, por exemplo, o que se reflete em conforto e segurança. Quanto vale a câmera traseira de manobras? Se ele morar num prédio com vagas apertadas na garagem ou estacionar com frequência um grande sedã em locais de onde saírem carros pequenos, muito; caso contrário, quase nada. Esse questionário se alastra acessório a acessório até o fim da lista daquele modelo, mas nunca se refletindo em cifras.

 

Diz-se que o consumidor está satisfeito quando acha que obteve o esperado perante o valor pago; se ele sentir ter obtido mais, estará encantado

 

Isso explica o comportamento da indústria automobilística na febre dos opcionais dos anos 70 e 80. Naquele tempo quase tudo era considerado opcional e cobrado à parte, mesmo que ninguém conseguisse comprar o carro sem uma coisa e outra. Nos anos 90 e 2000, introduziu-se outra escala de conceitos: satisfazer e encantar.

Um detalhe como faróis automáticos pode encantar quando descoberto, mas o efeito dura pouco

Qual a diferença? Diz-se que o consumidor está satisfeito quando acha que obteve o esperado perante o valor pago. Se ele sentir ter obtido mais do que imaginava pelo valor, ele se sentirá encantado. É nisso que a indústria se baseia para montar os pacotes e versões, além de poder padronizar a linha de produção. A ideia é sempre deixar alguma coisinha lá, sem fazer parte da lista, para que o consumidor se surpreenda e se sinta encantado. Quando comprei meu carro atual, minha esposa só percebeu que ele tinha faróis automáticos porque a iluminação do painel ficou azul numa passagem de nível — então ela viu que os faróis estavam acesos. Ficou encantada. Mas, por quanto tempo?

Ocorre que essas estratégias de marketing são muito mais efetivas na prestação de serviços do que na venda de bens duráveis. Se você vai a um restaurante e lhe dão uma dose de licor depois da sobremesa como cortesia, fosse ficará encantado, mas somente da primeira vez. Da segunda, não importa quanto tempo tenha passado, se o garçom não vier com os copinhos na bandeja, você ficará decepcionado. Se você espera por algo, encantamento não há de ser.

Com o carro não há de ser diferente, visto que — não importando qual a renda — não se compram automóveis todos os dias. É até pior, porque o consumidor olha para ele o tempo todo e observa sua deterioração, ou mesmo a banalização daquilo que o encantou.

Um amigo mecânico possui um Chevrolet Vectra 1996 em perfeito estado. Roubaram-lhe o rádio. Quando ele comprou um novo, observou no manual que aceitava câmera de manobras. Mandou instalar uma por um décimo do que se cobraria numa concessionária. Agora, ele tem um carro de 20 anos com câmera de ré. Queiramos ou não, banalizou-se o dispositivo. O mesmo acontece com sensores de estacionamento e inúmeros outros. Não há como evitar — e a indústria tem plena consciência disso. O remédio mercadológico é diluir o valor dos acessórios em pacotes ou versões, tal que a percepção de valor permaneça correlacionada a um conjunto, não a um gadget, como está na moda dizer.

Assim, se a nossos olhos nossas carruagens vão se transformando em abóboras todos os dias, cabe à indústria transformar as abóboras do futuro em carruagens de hoje para que continuemos comprando.

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Fotos: Fabrício Samahá

A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars

 

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