Foram-se os tempos da zelosa lavagem: hoje o automóvel
representa posição social, mas logo deixa de representá-la
“Brasileiro é apaixonado por carros”, diz o comercial da companhia de combustíveis. Volta e meia paro para pensar nessa noção, se é verdadeira, se corresponde à atualidade ou se ficou no passado.
É clássica a cena do zeloso proprietário que passa o sábado lavando, encerando, embelezando o “possante” como se fosse seu animal de estimação — ou mais que isso, quase um membro da família. O carro em questão não precisa ser novo, luxuoso ou potente; na verdade, sua simplicidade, os anos passados e os quilômetros acumulados no hodômetro servem justamente para tornar mais evidente quanto cuidado é dispensado em sua conservação.
Uma constatação, compartilhada com muita gente com que já conversei, sugere que o zelo dos brasileiros com a aparência de seu carro talvez não tenha similar no mundo. Seja na Europa e nos Estados Unidos — antes mesmo da crise —, seja aqui ao redor na América Latina, é comum ver circulando carros de fabricação recente com certos danos que afetam o visual, mas não a função, como raspadas e amassados. Eles não se incomodam porque se trata apenas de um meio de transporte, que não deixa de servir a seu propósito por causa de um raspão. No Brasil, isso é raro: rodar por aí com um para-choque ralado parece envergonhar mais as pessoas que andar com o sapato furado no dedão, para alegria dos “martelinhos de ouro” e funileiros em geral.
Tenho a impressão, porém, de que esse quadro está mudando.
De uns anos para cá, em grande parte pela facilidade de obter crédito e pela queda de juros, ficou mais fácil comprar um carro. Um carro novo, sobretudo, pois para os usados as condições não são tão favoráveis — o que concorre para derrubar ainda mais seu valor de mercado, mas isso é assunto para outro Editorial. Muita gente que nunca esteve perto de comprar um carro zero-quilômetro hoje pode tê-lo na garagem, mesmo que isso represente o comprometimento mensal de parcela expressiva de seu orçamento (leia mais sobre os custos associados a ter um automóvel).
Um dos efeitos dessa facilidade de compra, se minha percepção estiver correta, é que o carro — desde sempre um símbolo de posição social no Brasil, até por nunca ter sido barato —, ao mesmo tempo em que representa para mais pessoas a ascensão em termos financeiros, deixa de representá-la com mais rapidez. Sintetizando, o automóvel é desejado quando novo, mas perde seu apelo cada vez mais cedo.
O SUV espelha o modo de vida exagerado dos norte-americanos, mas eles têm gasolina barata e espaço abundante nas ruas, garagens e estacionamentos
Parece reforçar essa tese a declaração de um executivo da Fiat, alguns anos atrás, quando a marca remodelou mais uma vez a frente do Palio. A justificativa para a frequência das mudanças foi que o prazo médio de financiamento de veículos no Brasil era de 36 meses; portanto, ao fabricante interessava lançar um novo visual (mesmo que sem evoluções efetivas, eu acrescentaria) a cada três anos para estimular a troca do carro, enfim pago, por um novo. E tome carnê…
Um amigo que prefere se manter anônimo definiu bem essa tendência. “Meu Punto tomou uma chuva de granizo, ficou todo amassado e eu não estou nem aí. Nem me reconheço mais! Se fosse tempos atrás, teria consertado. E quer saber por quê? Porque daqui a dois anos eu dou um pé nele e compro um zero… Hoje, ficar consertando e lavando carro é coisa de gente que tem que fazer o carro durar décadas, porque não poderá comprar outro tão cedo”, explicou.
Se há esse desprendimento por um lado, por outro permanece viva — se não maior — a expressão do automóvel como símbolo de ascensão social. O que é curioso é que as pessoas, ou ao menos muitas delas, não precisam ver algo realmente caro para enxergar uma ostentação, um demonstrativo de situação financeira. “Eu tenho status de celebridade no meu condomínio porque tenho um Fiat 500 perolizado… Tem algo mais ridículo que isso?”, questiona outro amigo com que conversei a respeito nos últimos dias.
Sabendo que o 500 do amigo é uma simples versão Cult, a mais acessível do modelo, conclui-se que com R$ 40 mil — ou menos, se usado — já se pode passar por “celebridade”. Claro que isso depende da posição social de quem opina, mas mostra que um carro pequeno, dos menores que temos à venda no Brasil, pode ser o bastante para simbolizar que se “chegou lá”. Que o digam os donos de Mini e Audi A1, quase tão compactos quanto o Fiat, mas vendidos a preços que superam R$ 100 mil em algumas versões.
Não só a racionalidade
Se o pequeno pode ostentar, é claro que o grande o faz melhor, com mais facilidade. Acredito que isso explique até mesmo o êxito de modelos que julgamos puramente racionais, como o Chevrolet Cobalt e o Nissan Versa. Por mais que seu desenho controverso — sim, estou sendo bonzinho — dê a impressão de que são comprados apenas por atributos práticos como espaço interno, é um fato que eles são, ou parecem ser, bem maiores que os carros típicos do segmento que disputam, os sedãs compactos como Fiesta, Siena e Voyage. Pelo menos uma parcela de seus compradores está interessada não em esticar mais as pernas no banco traseiro, mas em fazer parecer que comprou um carro de segmento superior.
O que nos leva aos utilitários esporte ou SUVs, essa tendência que vem tomando conta de gordas fatias do mercado em todas as categorias, do compacto de R$ 50 mil ao superluxuoso de R$ 500 mil. Alguns podem alegar que amplo vão livre do solo, suspensão resistente e pneus grandes são importantes para eventuais escapadas ao campo, para chegar até um sítio distante ou mesmo para enfrentar o “fora de estrada urbano” no qual se transformaram nossas ruas. Mas parece que os verdadeiros fatores que motivam sua compra são outros.
O SUV espelha o modo de vida exagerado dos norte-americanos, com as diferenças de que eles têm gasolina barata, e nós não (embora a deles tenha encarecido bastante nos últimos anos), e para eles o espaço é abundante nas ruas, garagens e estacionamentos, o que não acontece aqui. Mesmo assim, cada vez mais pessoas se rendem aos apelos desse tipo de veículo.
O que acontece? O colega Juvenal Jorge, do ótimo blog Autoentusiastas, discutiu o tema algum tempo atrás. Entre outros argumentos, J.J. dizia: “No sentar mais alto, retornamos aos tempos da Monarquia, onde os tronos do rei e da rainha eram sempre altos. A maioria gosta de se sentir superior, chefe; então, compreensível gostar daquele carro alto”. E mais: “Muitos povos do planeta gostam de aparecer, e se pudessem, levariam uma vida de celebridade exibicionista: festas, recepções, aparecer na televisão, coisas desse tipo. O SUV é um pouco disso, com suas dimensões de anúncio de rua”.
Entender a mente humana não é fácil, mas alguns sinais dão uma boa noção da forma como pensa a maioria quando o assunto é automóvel. Para a minoria que pensa diferente, há uma boa compensação: encontrar a preços convidativos no mercado os bons carros, sejam novos ou usados, que muitos deixam de lado em busca de afirmação social.
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